quarta-feira, 27 de março de 2013

Vida ilusória

 


A anteceder o Dia das Mentiras, mergulhamos nas causas, condições e efeitos de (não) expressar a verdade.

Texto e fotografia Dina Cristo

Uma parte significativa da vida real é constituída pelo sonho e ilusão, em que se baseia, aliás, muito entretenimento. Por vezes é mesmo difícil distinguir onde acaba uma e começa outra dimensão. Nos tempos actuais de transição, a mistura aumenta e a confusão cresce tal como a necessidade de as distinguir.
O sonho, embora difícil, pode ser concretizado, depende por isso da acção, esforço e talento do sonhador. É ele que dá qualidade, humanidade e sentido à vida e impulsiona a evolução, lembra Carlos Cardoso Aveline. Por seu lado Omraam Aivanhov recorda que “Os verdadeiros progressos sempre foram obra de utópicos”[1].
Quando, apesar de ausente, no presente, o sujeito ou objecto permanece na memória de alguém, está-se perante uma imaginação. Pode ser uma fonte de alegria, criativa e construtiva - é o caso das fantasias artísticas, nomeadamente as musicais. Em relação ao deslumbramento e encantamento, de carácter emocional, próprio do fascínio, pode e deve ser corrigido pelo âmbito mental.
Já a ilusão não depende do iluso para a sua concretização. A pessoa ou objecto ilusor não está e nunca esteve presente. De carácter mental, pode ser reequilibrada com o nível emocional, nomeadamente através do amor. É um engano, uma esperança sem fundamento, que constitui uma distorção da realidade.
Muitas vezes uma fuga, a ilusão pode ter, entre as suas principais causas a dureza da realidade (social) e o egoísmo. Resulta também da astúcia e do ódio. O seu objectivo é o interesse, proveito e conveniência pessoal (como o aumento da posse), o desejo de dominar (pessoas e situações) e de ganhar tempo. Conduz, com frequência ao envelhecimento, à tristeza, à dor, que temia, e mesmo à infelicidade, miséria e, inevitavelmente, à desilusão.
A confusão mental provoca cada vez mais enganos, equívocos, erros, sofrimentos e intranquilidade emocional, que, por sua vez, pode levar à depressão ou (co)dependências – um ciclo vicioso que só aumentará a sombra e o aprisionamento. Se a curto prazo os efeitos parecem atrativos, em pseudo-realidades mais agradáveis, confortáveis ou prazerosas, a médio e longo prazo tornam-se desgastantes e destrutivas, uma espécie de pântano que alimenta a escravidão, como um vampiro que se sustenta do sangue da sua própria… presa.
A resposta mais comum é o prolongamento de uma ilusão com outra (nomeadamente casa, emprego, relação), a substituição do optimismo pelo pessimismo (o desânimo e o desespero, a crença de que não há saída) ou a troca deste por aquele. Poucos aproveitam a oportunidade para se sintonizarem com o realismo ou se elevarem a um plano real mais duradouro.

Quem (não) tem medo de expressar a verdade?

Os motivos são vários. A falta de experiência e de reflexão pessoal como a repetição de falsidades e mentiras colectivas, por um lado, a imposição e, ao mesmo tempo, a relativização de verdade(s), ao nível institucional, por outro, dificulta o reconhecimento da ilusão. A mescla entre realidade e ficção dissemina-se. Quantas vezes as mentiras são ditas com ar sério (seja no jornalismo, na história ou na vida quotidiana) e em “on”, utilizando palavras (muitas vezes escritas) e as verdades em (tom, programas e desenhos de) humor, na dita ficção científica, nas lendas, mitos, brincadeiras comuns como no “off”, nas palavras não ditas, no silêncio.
Superar o ‘sincretismo’ mental e discernir entre o que é e aquilo que parece ser é uma tarefa árdua. Exige força, coragem, renúncia às falsidades, reaprendizagem da arte de pensar (menos e melhor), experiência, maturidade, preparação e mesmo precaução para que, dada a sua energia, possa ser recebida sem estragos, como previne Omraam Aivanhov, autor para quem a verdade deve ser assimilada e integrada, experiênciada, vivida e aplicada antes de ser transmitida. Para Neale Donald Walsch, a sua expressão deve ser a cinco níveis: de cada um a si próprio e a outra(s) pessoa(s), da(s) outra(s) pessoas a si próprio e a ela(s) e acerca de tudo a toda a gente.
É difícil encontrar a verdade numa sociedade que confunde carência com amor e, como diria Emanuel Kant, o condicionado, as inclinações (patológicas), o sensível e a parte com o incondicionado, o mundo das Ideias, da Razão Pura, o todo; repleta de falsificações, onde as cópias substituem, com vantagens lucrativas, o original, com cada vez há menos alimentos genuínos e mais “do tipo de”, objectos contrafeitos e argumentos falaciosos.
Numa sociedade assim, com os indivíduos a perceberem as realidades de acordo com os seus filtros emocionais (onde predomina o medo e o desejo), como explicou Lucienne Cornu, com pressa(o) de se adaptar, os exemplos de ilusão são inúmeros. Desde (a linearidade de) o tempo, a separação, o isolamento entre seres e a permanência dos fenómenos, a própria ciência, religião e engenharia (segundo Óscar Quiroga), até à convicção de que a verdade não existe, de que se pode obliterar o envelhecimento, a doença e evitar a morte, agir sem quaisquer consequências ou colher sem semear.
Carlos Cardoso Aveline explica como Maya não é literalmente uma ilusão mas um nível de realidade em perpétua renovação, mutante e dinâmica, cíclica e impermanente. Esta dimensão enganosa constitui um nível mais externo de realidade, campo de competição, de carácter mental, e de interesses personalísticos.
A ilusão, que envolve a maioria dos humanos, corresponde às trevas, a objectividade, a superficialidade ou a aparência. Identifica-se com os pensamentos e palavras, da mente concreta, que controla, manipula, oprime, oculta, bloqueia, mente, desconfia, analisa, esconde, separa e, insegura, precipita a própria destruição, ao invés da sobrevivência para a qual encontra todas estas estratégias de defesa.
O intelecto é um meio de conhecimento, embora limitado, pois julga a partir das aparências, conclui a partir de visões parciais sem conseguir captar elementos subtis, o que origina erros, enganos e incorrecções, lembra Omraam Aivanhov. Amigo da crença, da fé e dos desejos, muitas vezes omite, resiste ou rejeita a realidade.
A mentira, denunciada em fados e canções, nacionais e internacionais, além de livros, é coadjuvada pela velocidade de informação, eufemismos e fingimentos. Amiga do joio, da preguiça e da anestesia, é cúmplice da submissão, susceptibilidade e estagnação bem como da cosmética em que tenta imitar e, ao mesmo tempo, encobrir e maquiar a realidade mais pura.

Da ilusão à iluminação

Mas aquilo que é objecto de ilusão pode, despoletado por uma desilusão e uma fraqueza, que leva ao crescimento, tornar-se um propulsor de iluminação e de franqueza, para um punhado de almas que procuram ultrapassar os limites da ignorância, da opacidade e da parcialidade e atingir um nível mais interno, anímico, intuitivo e unitário da realidade.
A verdade vai além do intelecto e concilia o conhecimento mais profundo, a sabedoria, com o amor, o que lhe permite penetrar instantaneamente no íntimo das coisas e dos seres e conhecê-los na totalidade, sem nada lhe ser ocultado e nunca se enganar, explica Omraam Aivanhov. Este nível mental abstracto ao integrar o significante, o corpo, a matéria visível e também o significado, a essência e o espírito invisível permite-lhe obter a visão do todo e não se reduzir a uma parte dele.
Ao contrário da mentira, tem pernas cumpridas e transcende o tempo e o espaço. Está para além das conveniências pessoais e dos interesses personalísticos. É, por isso, de seguimento raro e difícil mas criativo este caminho, em que a estética está ao serviço da revelação e descoberta da realidade, em direcção à transparência, à frontalidade e à aceitação, cujo desfecho é a correcção, confiança e segurança. Como escreveu Óscar Quiroga[3] «Belas ilusões se tornam indigestas e promotoras de problemas ao longo do tempo. Enquanto isso, cruas realidades enfrentadas com coragem tornam o panorama claro e transitável com muita rapidez»[4].
Satya, a verdade, é uma luz que dissolve as barreiras, um raio fulminante, sensível, breve e profundo; uma força de vontade que liberta e cura, e cujos frutos são o discernimento mental e a serenidade emocional; o autêntico poder mág(ic)o de revelar e manifestar a realidade oculta(da), qual “iceberg” desconhecido. «Verdade é» segundo Óscar Quiroga «o que se vive interiormente, é o que resiste a quaisquer argumentações; verdade é aquilo que geralmente não se discute nem sequer nos momentos em que nossa humanidade decide ter conversas sérias».


[1] AIVANHOV, Omraam - Pensamentos quotidianos. Edições Prosveta e Publicações Maitreya, 2013 (27/3/2013). [3] 28/06/2011. [4] QUIROGA, Óscar – 6/6/2011

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