quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Défice emocional



Próximo do Carnaval, momento de maior liberdade de expressão, dançamos ao ritmo das emoções, cujo corte se faz sentir no resto do ano.

Texto e desenho* Dina Cristo


Todo o ser humano tem um corpo emocional. Este seu lado psicológico, intermediário entre o mundo físico, das acções e decisões, e o mundo mental, das ideias e pensamentos, permite-lhe ter sentimentos e emocionar-se. É algo inato que serve, aliás, como forma de adaptação e de regulação do estado interno do organismo, como no caso do derramamento de lágrimas.

Apesar de ser algo natural, humano e universal, cada cultura tem não só as suas especificidades como as suas próprias formas de controlo, de definição das tipologias aceitáveis e formas de manifestação legítimas. Desta forma, o âmbito psicológico é não só reprimido como reaprendido. A finalidade pode ser evitar ou negar as emoções instintivas, consideradas socialmente incómodas, ameaçadoras ou vergonhosas, mas o resultado é a desadaptação, a estagnação, a auto-desorganização, o caos.

Ao definir quais as emoções admissíveis e convenientes, a vida sócio-cultural censura o lado emotivo dos indivíduos e estes, para se protegerem, acabam por reprimir-se, culpar-se, fingir (sentir o que não sentem e não sentir o que sentem) e fugir das suas próprias emoções. Por forma a melhor serem aceites em sociedade, as pessoas escondem aquilo que sentem, por vezes não só dos outros como também de si próprias – quando tentam suprimir o lado mais afectuoso ou combate-lo, seja pela negação ou mesmo rejeição do que sentem.

Homens e mulheres procuram eliminar momentos mais intensos recorrendo a dependências, que geram um prazer imediato mas falsificado, e ao consumo excessivo que levam ao ciclo vicioso, seja ele o alcoolismo ou o consumismo, por exemplo. Tentam dessa forma evasiva alienar-se e afastar-se daquilo que o seu próprio corpo revela, ao nível da respiração, circulação ou secreção.

Esta luta pela exclusão das emoções, este combate pelo corte emotivo, na verdade, só o reforça e nem mesmo a falsa frieza ou a aparente indiferença conseguem vencer. Pelo contrário, as emoções, assim barradas, encontrarão outras saídas, mais agressivas. Como explica Lise Bourbeau, no seu livro “O teu corpo diz ama-te”, o bloqueio emocional acaba por desencadear outros a nível físico, manifestados em doenças, então, somatizadas. Outras vezes aquilo que vai sendo implodido chega a uma altura em que rebenta – são as revoltas colectivas ou individuais, em que as ondas emotivas se propagam. O excesso de energia emocional, até ali contida, explode e é derramada de forma descontrolada, violenta ou destrutiva.

Desertificação emotiva

A vivência emocional é uma fonte natural de energia. Como a água, se ela se infiltrar no solo vai nutrindo os campos e quando em excesso gerará uma fonte, da qual nascerá um rio que alimentará vastos terrenos até desaguar no mar. Pelo contrário, se não houver um contentor para a reter ela rolará apressadamente até aos vales deixando os terrenos secos e em tempos de maior abundância de chuva arrastará muita vida ao longo do seu percurso. Também nos humanos, se a emoção não for aceite e fluir livremente acabará por se manifestar raivosamente – qual mola que motiva a agir é assim desperdiçada em vez de ser aproveitada como bússola orientadora.

Querer descartar as emoções é como tentar eliminar os sinais de um automóvel ou das próprias vias de circulação – um perigo. Meio de expressão das necessidades humanas, elas estão presentes para informar e ajudar a pensar e a agir, a decidir de forma mais correcta, não apenas por interesse ou com indiferença, mas por dever, como explica Abílio Oliveira, psicólogo social, no seu artigo “Entender as emoções” (publicado na revista "Biosofia", vencedora do IV Prémio de Informação Solidária). Uma sensação de dor, por exemplo, é um claro sinal de que o caminho que se está a seguir não é o mais correcto, indicado ou o melhor.

Se Kant considera as inclinações como patológicas, Omraam vê-as como um meio de acesso a uma via mais elevada: a Intuição. Se o ser humano quer transcender as emoções e, assim, atingir o Graal, tal não poderá suceder sem antes as atravessar. Não se chega ao Cabo da Boa Esperança sem antes ter vivenciado o Cabo das Tormentas. Os santos, antes de o serem, experienciaram toda a gama de emoções pelo que limitar as diversas frequências emotivas às culturalmente toleráveis é, na verdade, restringir o desenvolvimento humano.

Ao se separarem de si próprios, os indivíduos afastaram-se dos outros também. Com o coração fechado, a distância entre todos aumentou. Algumas pessoas, de tanto se querer convencer a si próprias de que não sentiam nada, acabaram, à força de tanta insistência, por secar. De tão camuflados muitos campos emocionais tornaram-se quase desérticos ao ponto das pessoas, tão adormecidas e anestesiadas, se sentirem mortas, pois eram as emoções que lhes davam vida. Depois são precisas campanhas de sensibilização e para que voltem a sentir algo são necessárias grandes quantidades de quase tudo, desde a alimentação à sexualidade.

Vida emocional

António Damásio lembra que o cérebro emocional é bem mais lento do que o cognitivo. Desta forma, as montagens, técnica muito usada para criar e aumentar tensão emocional desde Eisenstein, impede o desenvolvimento emocional. Com um consumo informativo cada vez mais acelerado e baseado em imagens, vê-se (quase) tudo e não se sente (quase) nada. Assim, além de ampliar a intolerância, aumenta a impotência emocional - a incapacidade para lidar e gerir as emoções.

Prescindir delas, como se tal fosse sintoma de progresso civilizacional, é próprio de uma sociedade patriarcal, regida pelo medo, poder e competição, em que os homens, pouco presentes fisicamente, estão ausentes emocionalmente. Neste tipo de organização social, dispensa-se a vinculação – aos sentimentos, a si próprio e aos outros (a solidariedade) e desvalorizam-se as Pessoas Altamente Sensíveis, profundamente emotivas.

Contudo, mesmo após a devastação a vida irrompe, nem que seja sob a forma de dor. Mesmo com altas doses de analgésicos ela lá está a dar sinal de existência. Ainda que escondido, o lado emotivo não desapareceu e agora, ao iniciar-se um período de transição, as emoções e os sentimentos recomeçam a ser apreciados. Há quem nunca os deixasse de assumir, mesmo publicamente. Roberto Carlos, o rei das emoções, é um exemplo; numa das suas mais célebres canções, entre centenas, canta: «se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu senti». 

Em Portugal - que Teixeira de Pascoais afirma ter uma alma mais emotiva do que racional, com mais tendência à poesia do que à filosofia – no fado, agora reconhecido internacionalmente, se expressa o sentimento saudoso, a tristeza própria da memória do sofrimento passado como também a alegria da esperança no futuro. Dando voz ao sentir do coração, fadistas animados, no máximo silêncio, comunicam com o público, em idênticos estados de alma.

Alguns sentimentos - mais estáveis, extensos, estruturais, duradouros e íntimos, como a amizade ou o amor – e várias emoções - mais instáveis, intensas, conjunturais, momentâneas e públicas, autênticos sentimentos em movimento, como a paixão, o medo (sinal de risco ou perigo que pode ajudar a vigiar, desacelerar e a proteger) ou a raiva (por vezes traduzida em silenciamento, revela um défice de expressão e estimula a auto-afirmação). Associadas a impulsos nervosos que induzem a libertação de neurotransmissores e se traduzem em sensações e alterações físicas, as emoções mudam com frequência: chora-se “hoje” por coisas que haviam encantado “ontem” e alegra-se agora com algo pelo qual antes se tinha entristecido.

Integração emocional

Mas observar, dar atenção, conhecer e saber reconhecer as emoções não significa deixá-las expressar-se como um autêntico cavalo à rédea solta. Saber lidar com a vida sentimental implica preservar a via racional, controlar as emoções mais grosseiras, em vez de ser consumido por elas em tempestades emotivas, preservar as mais finas, como o altruísmo, a compaixão, e de uma forma geral dispor o âmbito psicológico ao serviço do mental, ou seja, treinar a conciliação, a conjugação, a cooperação de ambos em vez da competição.

Como explica Omraam Aivanhov, razão e emoção são como duas pernas, ambas necessárias para se avançar em segurança. Como ensinou o autor, civilizações mais evoluídas do que a nossa desapareceram pela preponderância dada ao intelecto em detrimento do coração, que deve ocupar o seu lugar pois, como disse, só este pode remediar os efeitos malfazejos daquele[1].

Por sua vez, Kahlil Gibran instruiu que em vez da competição, concorrência ou combate entre a razão e a paixão, estas devem ser unificadas e compatibilizadas aproveitando para descansar no juízo, que sozinho restringe, e actuar no apetite, que só consome. O conselho é para exaltar a razão até ao cume da paixão e dirigir a paixão com a razão.

Substituir o conflito emocional (entre por exemplo um desejo íntimo e uma vontade pública) pela compatibilização entre os pensamentos e os sentimentos, usando-os de harmonia com a razão e não contra ela, é, pois, uma das formas mais úteis e construtivas de aproveitar beneficamente as emoções, muitas delas expressas em palavras.

Em vez de se desgastar tentando, em vão, combater as emoções, o que não raras vezes conduz à perdição, elas podem ser aproveitadas antes de tudo para o conhecimento da própria Identidade e ajudar a promover as mudanças necessárias, escolhendo o caminho e o veículo mais apropriado (seja uma auto-estrada, uma via nacional, uma rua regional ou mesmo um estrada alternativa, um percurso pedestre, enquanto outros irão de alta-velocidade ou de avião) para uma direcção decidida racionalmente, atingindo assim não só a salvação como a realização.

Dieta emocional

Para os casos de “inflamação” emocional, por irritação, exaltação ou excitação, em situações mais agudas, é recomendado fazer dieta emocional, o que significa alimentar-se menos mas de melhores e mais adequadas emoções, devidamente processadas e digeridas conscientemente, caminhar, tomar florais, recentrar em Si próprio, amar, trabalhar, escrever, ouvir ou ser ouvido reflexivamente, comunicar empaticamente, o que significa pedir a satisfação das necessidades em vez de as exigir ao outro, e contactar com o sol e a água corrente, observando-a ou banhando-se nela. A febre emocional, pela concentração de energia, acaba, em cerca de dois dias, por queimar, purificar e curar, ao libertar os resíduos inúteis, nocivos e venenosos das máculas emocionais.

Se em vez de mastigar se for engolindo e em doses excessivas, os detritos emocionais acumulam-se, envenenando o organismo. Para que, em alternativa, as cinzas não sejam lançadas a despropósito e abruptamente sobre o primeiro indivíduo mais receptivo que aparecer, é preciso filtrar de forma a que os sentimentos mais refinados possam ser assimilados e libertados convenientemente os mais grosseiros – o baixo astral de que falam os brasileiros.

Supressão emocional

Para processar as emoções, observar e geri-las é preciso tempo, para as enfrentar e manifestar é necessária coragem tal como para abrir o coração é fundamental aceitar e perdoar. Algo difícil no actual sistema social que conota a experiência emocional, mais subjectiva e pessoal, como uma ilusão, um devaneio ou uma fraqueza – uma fragilidade. Como a Teoria Crítica vem denunciando, a violência estrutural do sistema é tal que leva o indivíduo acreditar que aquilo que o seu coração sente, e o torna verdadeiramente humano, é um engano, uma mentira – o que se traduz, segundo a Escola de Frankfurt, numa brutalidade, crueldade e desumanidade.

No caso dos homens, onde a repressão é maior e os limites ainda mais estreitos (crescendo sob a ameaça de que um homem não chora), a emoção acaba por ser extravasada através da arte, nomeadamente da música, do desporto ou mesmo do trabalho – às vezes vividos excessivamente como forma de compensação. Também há tantos homens como mulheres altamente sensíveis, como revelou Elaine N. Aron, tal como existem homens marcados pela personalidade, motivação ou destino “dois”, uma vibração de extrema emoção e receptividade. Alguns, superdotados adultos, por exemplo, afogam as suas mágoas, incompreendidas pela sociedade, em dependências variadas – virando a agressividade que sofreram contra si próprios. Outros, mais integrados, ao adaptar-se à secura emocional, sem tempo nem espaço para deixar fluir as emoções, tornam-se carentes e (co)dependentes: naturalmente ricos e abundantes transformam-se em vampiros afectivos ao apropriarem-se, sem querer, de sentimentos alheios.

Capital emocional

As emoções traduzem uma forma de inteligência própria - são um capital altamente desvalorizado mas com uma riqueza que pode ser extraída pelo intelecto, como aconselhou Omraam. Para que a falta de autonomia se transforme em responsabilidade emocional, para que haja higiene emocional, através da expressão moderada que dissolva as emoções mais densas e as transmute em sentimentos positivos, para que as feridas e traumas emocionais se curem e os abusos emocionais se dissipem, para que se promova o bem-estar e a disponibilidade emocional, se satisfaçam as necessidades afectivas e a vida emocional deixe de ser tabu, para que a vida não seja apenas preenchida com cifrões mas também com significados, para que haja serenidade emocional, em equilíbrio dinâmico, para que a chantagem e a hipocrisia emocional diminuam é preciso que o pudor sentimental, como identificado por Gilles Lipovetsky, acabe e dê lugar à integração emocional.

Abílio Oliveira indica que há que, sem as banalizar ou exagerar, as entender, saber adequá-las e dirigi-las pois dado o seu potencial para refinar a mente e despertar o pensamento abstracto contêm a força de levar a agir para e pelo bem. Como se sabe um ser um humano emocionalmente adormecido é capaz de cometer as maiores atrocidades, daí a importância que António Damásio lhes dá ao nível do desenvolvimento moral.

Inteligência emocional

As emoções estão ligadas à memória implícita. A sua génese está no cérebro límbico, responsável pela aprendizagem e memória. Como Lucienne Cornu demonstrou a percepção é subjectiva, é um conhecimento que reflecte o estado emocional e depende dos filtros internos, e a interpretação não é mais do que o tratamento da informação segundo a memória, habitualmente baseada nas sensações de medo/desejo.

Reflectidas nas águas dos sonhos e ligadas ao corpo electromagnético, conotadas, nas antigas sociedades matriarcais, com as plantas e a adolescência, entre os sete e catorze anos, as emoções são habitualmente mais profundas do que as ideias e mais fortes e poderosas do que os factos, influenciando ambos – o nível mental e comportamental. Também os (pre)sentimentos costumam ser mais reais e poderosos do que aquilo que se está a fazer, as acções visíveis.

Abrir o coração

Hoje, é possível inaugurar um tempo de novas descobertas marítimas, não já ao nível do mar exterior mas das águas internas, até aqui encobertas. Como vimos, ignorar as emoções além de não conduzir ao seu desaparecimento só as vira, quais águas revoltas, contra a própria pessoa, traduzindo-se quantas vezes em “stress” e até a exaustão emocional. Se em vez de insistir em obliterá-las - por medo de se magoar, o que só conduz ao enfraquecimento e a doenças coronárias, através das quais o coração dá sinais de existência – os seres humanos se se empenharem em conhecê-las, pelo exame introspectivo e concentração, elas irão reforça-los e devolver-lhes a felicidade e a verdadeira segurança

Com moderação, sem mastigar de menos ou triturar demais, o ressentimento dará lugar à compreensão, à aceitação, ao perdão e à libertação. Poupando-a e aproveitando-a, os seres humanos podem, assim, usar a energia emocional, disponível gratuitamente, não só a seu favor como também em benefício dos outros, já que ficam mais enriquecidos para também os nutrir com sentimentos positivos.

Com a consciência de que as emoções ajudam não só a comunicar, a (sobre)viver, a aprender e a mudar, mas também alertam para as necessidades humanas, permitem avaliar os estímulos aos quais respondem, assinalando os acontecimentos significativos e apoiando a tomada de decisões, pode-se mudar o paradigma do medo de sentir para a confiança naquilo que se sente; pode-se ir além do envolvimento emocional e promover o seu progresso, aumentar a competência e habilidade emocional, reconhecer as emoções em si próprio e nos outros, possibilitar a telepatia, permiti-las na vida pública, como defende a Ética do Cuidado, e tornar a sua expressão receosa e indirecta algo (ultra)passado.

* Anos 70 [1] AIVANHOV, Omraam – Pensamentos quotidianos, Publicações Maytreia, 2012 – 16/11/2012.

Etiquetas: , ,