Razão adormecida
Sessenta e cinco anos após a publicação, revisitamos a "Dialéctica do Esclarecimento", conduzidos por dois autores* que retomam a tese defendida pelos teóricos da Escola de Frankfurt: a distinção entre alta e baixa cultura e a televisão banal como um exemplo dos efeitos negativos da cultura de massa sobre os espectadores.
Texto Dina Cristo
Theodor Adorno parte do Marxismo e do Iluminismo. O primeiro útil mas insuficiente para explicar a super-estrutura cultural, o segundo degenerado numa razão instrumental (distante da Razão Pura de Kant) tão totalitária como o mito anterior, já que a linguagem, geral, não integra, na verdade, todas as particularidades, que assim ficam extirpadas. O conceito geral ao (re)definir, ao nomear, está a (re)ordenar, a regular, a controlar, a dominar – a manipular a realidade dos objectos referidos. Eis identificada uma das presciências de Adorno: o consumo de signos no lugar dos referentes (a hiper-realidade de Baudrillard) e a sua falsa identidade.
Desenvolvida no capitalismo industrial e aplicada nos “mass media”, a razão distorcida manifesta-se na baixa cultura da indústria cultural – rádio, televisão, cinema e desporto – caracterizada pela redução da tensão (entre forma e conteúdo) em detrimento de uma linguagem fácil, leve, superficial, previsível, submetida aos formatos comerciais pré-determinados, heterónoma, portanto, e homogénea. Vicária, na substituição artificial e incompleta entre o todo (canção) e a parte (o refrão, por exemplo) e vice-versa, harmoniosamente resolvida.
Diferentemente, na arte, a alta cultura, inacessível às massas, que não a (re)conhece, há espaço, tempo e liberdade para a criatividade, o ângulo particular, a dissonância, o conflito não resolvido. Complexa, autónoma e heterogénea, tem “aura” e autor(idade).
Ao contrário de Walter Benjamin, para quem a reprodução técnica permitiria a educação das massas e uma verdadeira cultura de massa – feita para si e por si, expressando os seus anseios e sonhos, Adorno defende que esta cultura industrializada não só produz o produto cultural como fabrica a própria audiência - a natureza dos seus desejos, a sua resposta afectiva e (in)sensibilidade estética.
Adorno defende que os “mass media”, com a sua tecnologia e faculdade de duplicação, cópia, imagem, a parte, se tornaram equivalentes ao todo, a realidade da vida orgânica e original, de tal forma eficaz que se transformaram eles próprios numa realidade - virtual. Com a sua centralidade e penetração na vida doméstica, capacidade de invasão e infiltração na vida familiar, é um sub-sistema, cúmplice do sistema capitalista, que ingressa, domina e coloniza a vida do dia-a-dia.
Com o fetichismo cultural por um lado, e a naturalização tecnológica, por outro, a indústria cultural impõe-se modelizando, estandardizando, padronizando, homogeneizando, coerciva e deliberadamente. Com a informação, entretenimento e publicidade diluídas, ela vigia, policia, controla e promove, ao mesmo tempo, alívio – para a própria violência estrutural sistemática das partes não identificadas e integradas no todo, assim, restrito e limitado.
Theodor Adorno sustenta que a cultura que privilegia a gratificação sensorial imediata, mercantilizada, provoca “cegueira”, adormecimento, resignação, condescendência, infantilização, regressão instintiva e dependência irracional, como se de uma chupeta electrónica se tratasse. Alienado, de si próprio, dos outros seres e da vida, o consumidor abusa dos novos meios electrónicos, cujo véu não se apercebe, removendo a vida - o todo, a realidade, a “lifeworld” - fazendo-a substituir-se por pseudo-acontecimentos (uma antecipação da proposta de Boorstin) - a parte, a cópia, o sistema mediatizado e planeado, que confunde com a expressão, comunicação e solidariedade que efectivamente almeja.
No caso da televisão, para a qual a indústria concorreu, os efeitos são ainda mais sofisticados. Com a imagem a actuar directamente sobre o espectador, a televisão banal – materialização do calculismo racional - é capaz de instalar complexos no inconsciente da audiência, ao contrário do psicanalista, para degradar a sua auto-imagem, iludi-lo e torná-lo mais condescendente. Os meios de comunicação de massa têm a capacidade de estimular traços da personalidade (o homem viril, a mulher submissa) e amputar outros (a representação de intelectuais de forma enfeminada, a estigmatização da mulher assertiva).
Através das séries, Adorno notou que é difundida a ideia de que é inútil, indesejável, impensável, irreal ou impossível desafiar o “status quo” e é nesse contexto que o riso das “sitcoms” aparece como alívio para a violência estrutural do sistema, que oprime e escraviza, ao contrário da auto-propaganda que difunde a ideia de liberdade, democraticidade e tolerância.
É a indústria que delibera as “escolhas” e “decisões” dos espectadores e trata de eliminar qualquer ameaça ao estabelecido através de doses homeopáticas que, assim, a absorvem e neutralizam, expondo e escondendo, ao mesmo tempo, a lógica conservadora, violenta e mercantilista capitalista, bem diferente da novidade, também ela falsa e aparente que publicita repetidamente.
Parte de toda uma estrutura que é ela própria ideológica, a dominação cultural provocada pela indústria que organiza os tempos livres, consolidada através da razão impura, faz-se sentir no âmbito da auto-identidade, do trabalho e da Natureza, incluindo a humana, nomeadamente através da ciência e tecnologia. Um falso abstracto e consonância, caso do “frinchising” ou “fast food”, de nível incomparável às sociedade pré-tecn(ológ)icas, em que, desde o Tempo Primordial, o mito respondia ao desconhecido, numa dialéctica que envolvia objecto e sujeito.
A disseminação da faculdade intelectual da mente humana, como meio, dissolveu o potencial Iluminista de uma Razão genuína que permita a autonomia, liberdade, verdade e desenvolvimento humano. A perseguição do lucro capitalista e o calculismo mediático restringiram a independência do indivíduo e retiraram o pensamento e a cultura da sua livre expressão, bloqueando-a.
A televisão banal e reprodutiva, tem servido os interesses capitalistas, que preserva através do abuso da razão embrutecida. A colonização da vida pelo sub-sistema mediático tem vindo a oprimir ao contrário da libertação defendida pelo Iluminismo, manifestada através da Revolução Francesa, da Constituição Americana e da Revolução Industrial. Por isso Adorno afirma que a evolução tem sido mais através da dialéctica do que de forma linear, da barbaridade para a humanidade.
A indústria cultural mediática identificou e homogeneizou o pensamento. O sistema de signos fornece segurança e estabilidade ao Ser Humano mas priva-o da verdadeira experiência, essência e compreensão da vida, onde se move, conduzindo-o para um universo sedutor mas perigoso da simulação se transformar em simulacro, multiplicando-se em curto-circuito e já sem sentido algum.
O espectáculo deixou de estar definido (na distracção e divertimento) para se tornar difuso – um conceito que antecipou a “sociedade de espectáculo” de Debord -, um sistema panóptico agressivo e regressivo, facilitado pelo excessivo poder, fascinação e crença na tecnologia. Eis o risco dos meios tecnológicos se tornarem fins e se dissolverem no capital de uma sociedade de controlo ubíquo caso se percam os princípios apriorísticos da Razão Pura.
* TAYLOR, Paul; HARRIS, Jan – Critical Theories of Mass Media: Then en Now Maidenhead. Open University Press. 2008. P.62-84.
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