quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012


Imagem Hermínio Felizardo

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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A Comunicação (Ir)racional




Texto e fotografia Dina Cristo

O sujeito iluminista possuía uma identidade baseada na razão. Um núcleo interno, inato, central, que lhe permitia conhecer a sua essência, sintetizando, assim, de forma coerente, as suas várias características. Era, por isso, uma identidade una, completa, segura, estável, fixa e auto-suficiente.

O auto-conhecimento, através da razão, permitia a este sujeito, com um sentido de si mesmo e do seu lugar no mundo, ser autónomo e soberano. Uma personalidade, assim fundada na mente, era, pois, real, individual - única, singular, distinta – imprevisível e, contudo, univeral. Uma absolutização cultural, para Stuart Hall, ligada à trans-historiedade.

A Razão Pura, esclarecida e genuína, conduzia à autonomia, à liberdade, à verdade e ao desenvolvimento humano. Por isso Immanuel Kant defendia o racionalismo, o universo da razão, do entendimento e das Ideias, dos conceitos “a priori”, do ser em si - o númeno, a unidade e a essência dos objectos.

Este mundo inteligível, livre das inclinações, e, deste modo, desinteressado dos fenómenos, permitia a ordenação (dá ordem e hierarquiza), a elevação e, apesar do inicial sofrimento (para além do conflito com as paixões, a razão pura danifica o amor de si, a benevolência, e aniquila a auto-complacência), depois o vero auto-contentamento e mesmo felicidade (a harmonia da sua natureza com a sua vontade).

O Supra-sensível é, pois, a voz celeste, intuitiva e sintética, do mundo interior, simples e pura, que julga de forma livre, independente e autónoma. O reino dos princípios e predisposições, do arquétipo – divino - onde reside a lei, a moral (e a lei moral), o dever, a virtude e o bem, que o ser humano deve (per)seguir.

Tal dimensão da vontade, necessária e causal, é fonte central e unificadora, o todo que inclui efectivamente todas as partes. Um plano de consciência, geral e mesmo universal, sem fronteiras, incondicionado e real, onde se manifesta não apenas a comunhão e a compreensão mas uma comunicação com livre arbítrio e racional.

Ora um dos principais cuidados de Kant, no seu livro “Critica da Razão Prática”, sublinhados no prefácio e na conclusão, é precisamente a distinção entre o racionalismo e o empirismo e a atenção para que não se tome o condicionado, o mundo sensível, pelo incondicionado, o mundo supra-sensível.

Ao contrário do mundo da razão, o dos sentidos - da sensibilidade, das sensações, dos impulsos, das inclinações, das paixões – é aparente, ilusório e enganador. É o plano do ser para nós, dos fenómenos, das acções, dos objectos e das experiências. Não já o mundo da essência, dos arquétipos e das causas, mas da existência, das cópias e dos efeitos.

Trata-se, pois, da voz terrestre, das disposições, humores e desejos, que rebaixa o sujeito e o mantém dependente e constrangido pelas necessidades de prazer imediato, a princípio cativante, mas trará, contudo, auto-censura, culpa, arrependimento e sofrimento, em especial nos prazeres inferiores e tratando-se de um sujeito com sentimento moral.

Um universo degradante, caótico, irracional, periférico, fonte de exigências dos direitos, da formulação de máximas, onde o sujeito se desorienta com os seus interesses, fins e objectivos, submetido à percepção, limitada, do plano empírico – exterior, diverso, contingente e condicionado - que embrutece e ensombra o seu entendimento e acção.

Com a modernidade, a razão - antes pura, genuína e virtuosa, do iluminismo – degenerou, desvirtuou-se e, degradando-se numa razão impura, instrumental, calculista, obscurecida e embrutecida, perverteu-se num meio para atingir os interesses, particulares e egotistas. A complexificação das sociedades, o êxodo rural para as cidades, a industrialização, nomeadamente ao nível cultural, o capitalismo e as nacionalizações foram algumas das contribuidoras para que a razão impessoal e livre do mundo inteligível fosse distorcida, enfraquecesse e recuasse.

O sujeito moderno, ao emigrar para a cidade, afasta-se da sua cultura tradicional, ligada à região e ao local, à religião e ao sagrado, ao passado e à memória, à co-presença e ao simbólico. Deslocado, nas cidades desconhecidas, ali se exila e isola, transforma-se em mais um sujeito anónimo e atomizado na massa citadina.

Analogamente, a identidade, antes interna, una e auto-suficiente, se exterioriza, descentraliza e desagrega. Com uma ênfase cada vez mais colocada na relação social - reflectida ao nível de vários ramos científicos - o indivíduo vai-se alienando, afastando cada vez mais não só de si mesmo e da vida, mas também, paradoxalmente, dos outros e dos objectos, numa relação crescentemente mediada.

Desvinculado e vulnerável, progressivamente exposto ao mundo social, público, técnico e mediático, o indivíduo substitui a tensão própria da tese e antítese identitárias, que permite a síntese integradora, por propostas vindas do exterior, já pré-fabricadas e padronizadas, prontas a adquirir imediatamente.

A sua identidade, distante do seu núcleo interno, de onde é progressivamente desalojada, enfraquece e torna-se cada vez mais dependente dos vários modelos difundidos, tornando-se cada vez definida social, historica e heteronomamente, mais nacionalizada, submetida à influência de padrões estranhos que se vão entranhando, infiltrando e penetrando.

Trata-se de um relativismo cultural, de indivíduos que se vão traduzindo, assimilando e homogeneizando, tornando-se mais permeáveis a um poder de influência que vai suprimindo as suas diferenças - de forma regressiva, agressiva e coersiva – dissipando e convertendo-as em características mais estáveis, previsíveis e, assim, manipuláveis.

O seu ser real e coerente vai-se desmoronando, substituindo por múltiplas possibilidades de ser, descontínuas e variáveis, às vezes contraditórias e mesmo inconciliáveis – que o dividem. Ao mesmo tempo que se vai afastando da sua natureza humana e racional, o indivíduo vai-se aproximando, seduzido, do alheio e objectivo, que vai integrando e (re)conhecendo.

A indústria cultural, através da informação, entretenimento e publicidade, vai regulando e “disciplinando” o sujeito, amputando dele certos traços, através da crítica, ridicularização ou invisibilidade, e ampliando outros - modelos pré-determinados, uniformizados e ilusórios de parecer - que vão sendo repetidamente representados.

Esta forma mediatizada de contacto com outras formas de “dever” ser, que rebaixa o sujeito, o estigmatiza, deprecia sua auto-imagem e instala nele complexos (ao contrário do psicanalista que os tenta retirar), estimula o sensacional e a infantilidade, e excita a tal ponto as motivações utilitaristas e empíricas que o indivíduo se torna incapaz de compreender as racionais.

Um sub-sistema que captura e transforma a consciência do indivíduo - submetendo-o ao consumo de signos, seduzindo-o pela imagem, fascinando-o com (as enganosas facilidades de) a técnica – e o vai envolvendo, dominando e controlando, transformando-o num ser adormecido, passivo e prisioneiro - numa escravização ‘desejada’ pelo sujeito e planeada pela indústria.

A indústria cultural, sub-sistema do Sistema Capitalista, não apenas fabrica produtos como também produz audiências e é ela que(m) dirige, define e delibera personalidades, desejos e objectos; opiniões e decisões assim induzidas que são, na verdade, falsas escolhas, além de irracionais e previsíveis, como vimos.

Esta baixa cultura industrial, que oferece satisfação sensorial imediata, concretizada na televisão banal, por exemplo, é a manifestação de uma razão embrutecida e estratégica que, obscurecida pelos interesses, neste caso comerciais, assim conquista as audiências massivas, às quais submete uma falsa homogeneidade, consonância e abstracção.

Na verdade é uma uniformização, conseguida pela extirpação das partes, diferenciadas, específicas, que assim se vão ocultando, silenciando e discriminando. Uma marginalização, separatista e anti-comunicativa, que, tal como na personalidade do indivíduo, ocorre igualmente entre os próprios sub-sistemas - Governo, Mercado e “Media”, burocracia, capital e técnica - que se distinguem e valorizam, nomeadamente através dos seus líderes e especialistas, e da lifeworld, a vida de todos os dias, onde ocorre a interacção social e se movem os generalistas.

A razão, assim distorcida, em vez de integrar e sintetizar, unindo, analisa, desintegrando e separando. Evidencia e salienta umas partes, que a reproduzem, e abafa e desautoriza outras, que a criticam, ou ameaçam, pela alternativa que constituem. É, pois, uma razão totalitária, hegemónica, que coloniza, hoje, corporativamente.

Com origem na vida orgânica, da qual se destacaram, as partes sub-sistémicas “autonomizaram-se” de tal forma que passaram a ser confundidas com o próprio todo, que copiavam, representavam e duplicavam, primeiro e depois passaram a impor a sua supremacia, redefinindo o dia-a-dia, sem consentimento, embora de forma condescendente, consequência das suas estratégias de propaganda e manipulação. Eis a razão sensível a agir, como criticava Kant, tomando o falso pelo verdadeiro, o aparente pelo real, a parte pelo todo.

A princípio a ambição de se distinguir e sobrepor, de se diferenciar, levou os sub-sistemas a criarem palavras, signos, códigos, canais, linguagem, discursos e representantes – cada vez mais técnicos, especializados e complexos – promovendo a graduação, a estratificação e a desigualdade e, simultaneamente, rejeitando largas camadas da população que os ignoravam.

Trata-se das maiorias, sub-representadas nos sub-sistemas, incluindo o mediático, mal ‘traduzidas’, assim, em minorias. Uma perversão proporcionada por uma mente astuta, mas não inteligente, que, além da falsa equivalência, porque redutora, e da invasão da vida doméstica, familiar e social, sobrepôs códigos e regulamentações com soluções estandardizadas à livre troca de argumentos, própria da negociação linguística, para partilha, entendimento e consenso, dada a real diferenciação especificamente humana.

Uma vez mais, a razão sensível age condicionada pelas condições e ambições empíricas e, seduzida pela facilidade e falsidade (nomeadamente técnica e comunicativa), prende-se nela, comprometendo o seu desenvolvimento, superação e elevação humanas. Em vez do conceito, das categorias apriorísticas de Kant, a razão concreta baseia-se em preconceitos, algo que parece ordenar, estabilizar e dar segurança perante o desconhecido mas que constitui uma forma de conhecimento redutora, superficial, que priva da verdadeira compreensão do mundo, das coisas e do seres.

O sub-sistema cultural, ao mesmo tempo que reduz, nega e despreza o verdadeiro - seja em relação à identidade, à vida quotidiana, às maiorias sociais ou mesmo à razão discernida – expande o falso ou falsificado, a hiper ou pseudo-realidade, abusando da eficácia sub-consciente da imagem, tornando o espectáculo, antes próprio do entretenimento, cada vez mais disperso e difuso, injectado na informação e derramando-se pela vida de todos os dias.

A personalidade do indivíduo está tão enfraquecida e a simulação é de tal forma preparada e planeada que a cópia, a parte, não só se parece cada vez mais com o original, o todo, como corre o perigo não apenas de se lhe sobrepor mas mesmo de o destruir, o que significa deixar de haver simulações para passar a existir simulacros, signos já sem referentes, imagens às quais já não corresponde qualquer objecto, sujeito ou acontecimento.

Na formação das nações, as diferenças tribais, linguísticas e culturais foram suprimidas pelo uso da força, violência e barbárie, que impôs o predomínio de uma língua vernácula sobre todas as outras, de um destino comum aos demais, de uma falsa narrativa unitária sobre as divergências. O sistema nacionalista e capitalista, com a sua super-estrutura ideológica ubíqua e panóptica, passou a oprimir, a vigiar e a policiar.

As expressões assim bloqueadas, forçadas para um pressuposto consensual de fundo, constituíram uma repressão ocultada que destruiu o processo de comunicação. A comunicação democrática, baseada na simetria, na igualdade de oportunidades de expressão e na reciprocidade, na livre troca de argumentos, com base em informação genuína, não deturpada e sem coação, é eclipsada sobretudo quando a imprensa privilegia determinados indivíduos, líderes e especialistas, em detrimento da audição dos directamente afectados.

Autores como Habermas, Adorno ou Lincoln Dahlberg asseveram a existência de uma desigualdade estrutural, de uma violência sistémica – um problema criado pela arrogante razão sensacionalista, má juíza em causa própria, que esconde a lógica conservadora, reprodutora, brutal, opressora, exclusiva, parcial e desigual através de um discurso retórico onde propaga ser o oposto: inovadora, criativa, prazerosa, livre, inclusiva, plural e igualitária.

Os sub-sistemas propagandísticos disseminam de forma tão permanente, cruzada e continuada a ideia de que o Sistema encarna a liberdade de expressão e de que não pode ser alterado sem a sua perda que faz as alternativas e dissonâncias parecerem vagas, irrealistas, indesejáveis, impossíveis ou impensáveis, depreciando-as em programas de humor, autêntico alívio pré-determinado para a sua própria violência.

Embora funcione num registo individualista, consumista e capitalista, difundindo tais significados e discursos, a sua auto-propaganda dissemina a ideia de que é altruísta e se move ao serviço da audiência e não dos seus interesses mercantilistas. Uma razão poluída que se afirma central e geral, um “nós”, sendo, na verdade, periférica e particular, um “eles”, como lhe chamam as pessoas comuns no seu dia-a-dia.

Tal designação demonstra a separatividade, o distanciamento, o fosso que os sub-sistemas, produtos da razão distorcida, provocaram no indivíduo - cada vez mais excêntrico, escravizado e dominado pelos meios técnicos, que se tornaram um fim, e pela mente objectiva, que se converteu num meio - cada vez mais carente, incompleto e alheado, numa perseguição astuta, impulsiva e narcísica de conquista dos seus desejos, como sensação compensadora.

Contudo, das largas maiorias reais, assim oprimidas e reprimidas, barradas na sua entrada no discurso mediático, nem todas foram assimiladas, destruídas e eliminadas. Algumas, em transição, desapegadas das raízes culturais mas também resistentes à assimilação, mas sobretudo as tradicionais, irrompem através dos movimentos sociais dos anos 60, da globalização e da Web.

No pós-modernismo, as identidades ocultadas e abafadas das vozes, grupos, géneros ou etnias, até então ignoradas, reivindicam doravante representação adequada e justa no espaço público e mediático. Um anseio de reconhecimento por parte do todo, preservando as suas diferenças, reclamando a reconstituição, reunificação e recuperação da essência, do fechamento e da coesão originais.

Uma resposta, a ocidente e a oriente, dos mais puristas, tradicionalistas e fundamentalistas, à segregação como reacção às vagas migratórias, fascinadas pelo estilo de vida e produtos ocidentais publicitados por uma indústria cultural, cada vez mais internacional, e pela maior interdependência cultural.

Agora sem fronteiras, a indústria cultural global, aumentou a sua capacidade de penetração, elevou ainda mais a oferta de múltiplas identidades possíveis, incrementando, paralelamente, identidades cada vez mais fragmentadas, descentralizadas, desagregadas e isoladas.

O mesmo sistema, ao criar novos meios, digitais, reforça os efeitos anteriores de supremacia e imposição, por um lado, e de despersonalização e menoridade, por outro, acentuando a desvinculação do lugar e da co-presença e intensificando a abertura ao estranho e cada vez mais distante, o “ausente”, confundindo o indivíduo, uma vez mais, a interacção comunitária virtual com a experiência de comunicação e solidariedade que almeja.

A Web, particularmente a Web 2.0, que para os entusiastas, serviria de oportunidade para reequilibrar o desnível existente entre o sistema, o on line, e o mundo da vida, o off line, segundo Lincoln Dahlberg não só não diminuiu como, além de se manter, se agravou. Numa nova economia da atenção, onde a (in)visibilidade é determinante, os que já eram bem vistos passaram a sê-lo ainda mais, quer no sentido literal quer simbólico.

O novo sistema passou a ser, assim, uma oportunidade para aqueles que já (pre)dominavam - social, económica e educativamente - aumentarem as suas vantagens competitivas e oportunidade nenhuma, nem mesmo de melhorar as condições de vida, como defende o autor, das largas camadas de população que nem sequer têm as condições mínimas para lhe aceder, como infra-estruturas, equipamento, electricidade, competência ou tempo.

A nova geração Web aprofunda ainda mais o fosso não só em termos de acesso mas também de participação, uma vez que a actividade na Web, para os que têm acesso, se limita maioritariamente à reprodução, à retransmissão ou imitação dos principais “mass media”, revalorizando, assim, as ideias já bem notadas. Mesmo no campo da blogosfera são residuais os «vloggers», “bloggers” que conseguem ter uma audiência relevante, enquanto os «floggers», pagos por corporações para publicitarem os seus produtos ou serviços sem o conhecimento do público, pululam.

Acentua-se o desequilíbrio entre os que têm condições, competência e poder, nomeadamente económico, e criam, produzem, actuam, decidem se e quando querem ser vistos, e os que não o tendo se limitam a copiar, a disseminar, a consumir passivamente e a ser monotorizados, vigiados e controlados nas suas pesquisas, compras e perfis, agora reconstruídos pelas grupos empresariais de “media” e telecomunicações e vendidos às empresas de publicidade.

De forma acentuadamente refinada e cada vez mais sofisticada, as corporações dominam, controlam e manipulam os cidadãos, seduzidos com as aparentes facilidades, vantagens imediatas e prazeres instantâneos, quer ao nível dos conteúdos, licenciados, quer da forma, através de códigos ou termos de uso, e também dos dados pessoais armazenados, obtidos através dos registos obrigatórios dos “cadastrados” para acesso aos “domínios”.

As diferenças também se salientam entre os proprietários, grupos que não têm em conta o interesse público, o Bem Comum, e os que são abusados, explorados e expropriados, nomeadamente quando fazem trabalho voluntário que, em última instância, não lhes pertence e, anonimamente, contribuem para fomentar grandes audiências, baseadas num número restrito de fontes, com a supremacia de conteúdos comerciais e profissionais, ainda que presentes em menor quantidade, como é o caso do You Tube.

O sub-sistema técnico e cultural actual, digital, é pois mais um meio do mesmo Sistema se impor, dominar e discriminar os indivíduos, fascinados, dependentes e isolados. O hiato entre os que integram ou se adaptam aos sub-sistemas e os que deles permanecem distantes, ignorados, desprezados, abusados ou rejeitados reflecte-se na vida orgânica, agravando o seu desfavorecimento e empobrecimento, designadamente em capital social, económico ou digital.

As ferramentas e plataformas que a Web 2.0. traz consigo, além da referência, exemplo e esperança da Wikipédia - como comunicação significativamente mais livre, voluntária, autónoma, cooperativa, colaborativa, produtiva, aberta, disponível e, portanto, mais justa - não estão a ser suficientemente usadas e ocupadas, pelo que as promessas dos cyber-libertários, como lhes chama Dahlberg, de ultrapassar as desigualdades, estão ainda por cumprir.

Lincoln Dahlberg confia que, ao contrário das outras diferenças, as de poder, ligado ao discurso, são reversíveis. O mesmo signo, linguagem, logos, “medium”, representação que até aqui serviu, mal usado ou interpretado, para obstruir, barrar, separar servirá, bem usado e compreendido, para fluir, ligar e reunir as partes cindidas, num todo coeso, completo e integral.

De igual modo, Habermas defende que a via, o caminho seguro para a emancipação social é a comunicação racional. Ultrapassar a escravidão de extensas massas de população e atingir a libertação, a expressão de uma subjectividade, personalidade e identidade até aqui sufocadas, abafadas e censuradas, será possível se a razão impura - deturpada pelos sentidos, sensações e ambições, zeladora dos seus interesses particulares em detrimento do conjunto – se submeter a uma razão superior, mais pura, unificadora e universal, que efectivamente religue e integre todas e cada uma das partes no mesmo centro, sintetizador e não discriminativo.

Até aqui, a mente esperta mas não desperta, calculista e interesseira, desvirtuada e descuidada manifestou-se em diferentes áreas. Ao nível da imprensa, esta degeneração concretizou-se na maximização da presença do objecto e na minimização da marca do sujeito, reflectindo, também aqui, a sujeição do profissional aos factos, às coisas, aos acontecimentos empíricos.

O jornalismo industrial adoptou, por auto-defesa, uma falsa imparcialidade, fragmentando, descontextualizando, desideologizando e desidentificando, motivado por finalidades comerciais de aumentar as tiragens, expandir as vendas e aumentar significativamente as audiências. Chamou-se-lhe objectividade.

A repressão dos sujeitos, abafados e ocultados, na sua personalidade, identidade e expressão, ocorreu não apenas com a audiência e as fontes – foram privilegiadas as que possuíam um discurso ofensivo, agressivo, competitivo, militar e oficial, em detrimento dos actores sociais, com um discurso e uma prática mais inofensivos, cooperativos e pacifistas - mas igualmente com os profissionais que passaram, nas fábricas de notícias, a assumir parâmetros de neutralidade.

Em resultado dos critérios definidos também o jornalista se foi alheando, distanciando e tornando-se cada vez mais indiferente aos outros sujeitos, quer fossem fontes, temas das suas narrativas ou leitores, não sem gerar, contudo, um conflito de identidades, entre a profissional, desautorizada e reprimida, e a pessoal, cada vez mais ansiosa por conhecer, aproximar-se e relacionar-se com o outro, como mostram Linda Steiner e Chad Okrusch.

Desde há quase 20 anos que os efeitos foram detectados: uma crise de imprensa equivalente à da vida política, com o público, no primeiro caso, e os eleitores, no segundo, a afastarem-se, a desligarem-se e a ficarem também eles indiferentes às respectivas agendas, mediática e política. Encetaram-se, então, com o jornalismo público, esforços no sentido de recuperar a ligação, a conexão e a atenção perdidas.

Estas são três características fundamentais da ética do cuidado, que propõe precisamente a expressão da subjectividade aprisionada, agora livre para publicar a sua posição. Como afirma Martin Bell, o jornalismo de religação é “um jornalismo que cuida tanto quanto relata; que está consciente das suas responsabilidades; que não se manterá neutral perante o bem e o mal, o certo e o errado, a vitima e o opressor”(1).

Não se trata, contudo, de uma reafirmação de ainda mais parcialidade mas, pelo contrário, da verdadeira imparcialidade, desinteresse ou interesse colectivo – a defesa do Bem Comum. Uma Subjectividade inerente ao campo privado, da autonomia e da auto-regulação, correspondente a uma razão mais despoluída e discernida, que possibilitará a transição da opressão para a expressão, da exclusão para a vera inclusão e da diferenciação para a igualdade perante a lei moral.

Segundo o tratado “Crítica da Razão Prática”, de Immanuel Kant, a lei moral, universo do racionalismo, ordena o cumprimento dos deveres, do soberano bem, a moralidade - a predisposição de ânimo de acordo com o espírito da lei, por amor dela - e não a mera legalidade - a acção de acordo com a letra da lei, tendo em vista compensações, gratificações ou satisfações, como o mérito.

A primeira condição para o soberano bem é a virtude, a intenção pura - desinteressada, livre e independente de quaisquer apegos, inclinações ou vantagens sensacionais, próprios de uma razão afectada ou patológica – um espírito que julga segundo princípios racionais, universais, “a priori”, as leis, e não segundo finalidades empíricas, particulares, “a posteriori”, as máximas.

Além da ética da justiça (que enfatiza os direitos) e dos valores de religação e reconexão, do jornalismo público, que assume, a ética do cuidado propõe-se integrar também a ética da virtude, não como algo que se deva ocultar a nível público mas, antes, como uma qualidade cognitiva a aplicar e a desenvolver, mesmo a nível profissional.

No caso do jornalismo, uma profissão moralmente séria - com valores de justiça, verdade e democracia – a virtude cognitiva traduz-se numa epistemologia moral, uma forma de conhecimento e modos de produção noticiosa moralmente orientados, o que implica recolher, seleccionar, tratar e publicar informação de uma forma atenta, cuidada e correcta, com dedicação, envolvimento e carinho, não só em relação às pessoas mas também aos factos, aos documentos e às palavras usadas(2).

Numa profissão assim, com agentes e modos de produção morais, as respostas tendem a sê-lo também e crescentemente conscientes. Num jornalismo cuidadoso, a preocupação em relação aos efeitos sobre o público operacionaliza-se através do princípio da precaução, que integra a responsabilidade social – de acordo com uma das principais leis morais, conforme tratadas por Kant, que é a extensão da prudência, o amor de si, à felicidade dos outros.

Mas a principal lei moral, a lei das leis, é «Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo»(3). Ora este amor humano relativo à segunda parte do mandamento está em sintonia com as necessidades de reaproximação, religação e reconexão, reconhecidas pelo jornalismo público, ou de reintegração, identificadas por Habermas, Adorno ou Dahlberg.

De igual modo, as propostas de compreensão, caridade ou compaixão assumidas pela ética do cuidado - embora esta última, na perspectiva kantiana, esteja sob o domínio dos afectos, das inclinações e não da razão – vão no mesmo sentido de restabelecer os vínculos, as relações. Segundo os investigadores Steiner e Okrusch, o jornalismo cuidadoso não só deve ter e manter ligações, pessoais e profissionais, como as deve esclarecer no seu trabalho.

Está, pois, (em) aberto o caminho para que as partes até aqui excluídas do discurso mediático – os pobres, as mulheres, os cuidadores, por exemplo – possam doravante ser nele incluídos, com atenção e com amor. Quem cuida de outros em sofrimento são, de entre os seres humanos, os mais sofredores e a escolha de os colocar na agenda mediática, enquanto tema público, é também ela uma decisão moral – de quem mais precisa e merece atenção pública.

Em vez de ignorar estas camadas da população – habitualmente num trabalho mais privado, voluntário ou mal remunerado, mas mais exigente, em tempo e dedicação, generoso e amoroso – a proposta é passar a ouvi-las com atenção e escutá-las. Tal não só permitirá aliviar a sua sensação de isolamento como incentivar quem assiste a passar da mera benevolência (“care about”), a preocupação com o outro, a bondade, para a beneficiência (“care for”), a acção concreta de cuidar do outro.

Numa altura em que se eleva a consciência da audiência relativamente ao sofrimento humano em todo o mundo e também aumenta a sua vontade de ajudar a minorá-lo, tal como sucede com os próprios jornalistas, possibilitar a acção de serviço social, generosa e desinteressada, o voluntariado, permite não só a expressão saudável de uma subjectividade até aqui contida, como vislumbrar a tal acção virtuosa e caritativa apenas e só por respeito pela lei, tal como colocada por Kant.

Uma atitude, que além de possibilitar a reunificação das partes diferentes, divergentes, alternativas, habitualmente desprezadas, reflecte uma mudança profissional – da clássica exploração do sofrimento alheio para benefício económico das corporações mediáticas, através do estímulo intenso dos instintos humanos – para a elaboração de novas e mais perguntas sobre os agentes e acções que, no terreno, aliviam esse sofrimento, e, mesmo nos gabinetes, estudam propostas de (re)soluções mais institucionais, como defende o jornalismo de paz(4), contribuindo, assim, para o desenvolvimento da intuição humana.

O ser humano, pela sua personalidade, pertence aos dos mundos, o sensível e o supra-sensível. É, portanto um ser sagrado, digno de respeito – sentimento exclusivamente dirigido a pessoas, ao contrário da admiração também dirigível a objectos ou o amor, a animais -, sobretudo em presença da rectidão de carácter, uma maneira de pensar prática consequente e reveladora do soberano bem no homem.

Assim, «Que, na ordem dos fins, o homem (e com ele todo o ser racional) seja fim em si mesmo, isto é, que não possa jamais ser utilizado por alguém (nem sequer por Deus) simplesmente como meio, sem ao mesmo tempo ser ele próprio um fim; que, por conseguinte, a humanidade deva ser para nós próprios sagrada na nossa pessoa, eis o que decorre de si mesmo, porque o homem é o sujeito da lei moral, por conseguinte, daquilo que é santo em si»(5).

A beneficiência aos pobres é um dos exemplos, apontados por Kant, de prazer superior da faculdade de desejar em que a vontade é determinada pela razão. O resgate da subjectividade, da sua auto-expressão, constitui a emancipação através da razão transmutada, purificada e regenerada, ultrapassando a análise tradicional, positivista e objectiva, analítica e uniformizad(or)a, e aproximando-se do conhecimento sintético, unificador e autónomo.

A proposta de uma informação produzida atentamente e de forma cuidadosa, expressão do dever moral do amor a si mesmo e ao próximo, representa uma vontade determinada pela razão, segundo princípios universais, uma (re)aproximação ao próprio núcleo interno e inato, central e uno, do entendimento humano, “a priori”, e do julgamento livre e independente das prisões e ilusões dos sentidos, interesses, conveniências ou vantagens particulares.

Segundo Kohlberg, os jornalísticas cívicos e de investigação atingem o máximo na sua escala de desenvolvimento moral correspondente ao estádio pós-convencional em que a (pre)ocupação com o outro não se limita à família e ao círculo de amigos mas se estende a toda a humanidade – uma nova consciência e responsabilidade à escala universal, resultado de uma comunicação (mais) racional que poderá transmutar o isolamento em solidariedade globalizada.

(1) Bell, Martin. The journalism of attachement in M. Kieran (ed). Media ethics, pág.19, London: Routledge – citado por Linda Steiner e Chad Okrusch, Care as a virtue for journalists in Journal of Mass Media Ethics, 2006, 21, pág. 116. (2) Cf. CYTRYNBLUM, Alicia – Periodismo social – una nueva disciplina, La Crujía ed. 2004, pág. 83-89. (3) KANT, Immanuel – Critica da Razão Prática, Edições 70, 1985, pág. 98/99. (4) LYNCH, Jake – Peace journalism in ALLAN, Stuart (editor) - The Routledge Companion to News and Journalism. London and New York, 2010, p.541, p.543-553. (5) KANT, Immanuel – Critica da Razão Prática, Edições 70, 1985, pág. 151. Bibliografia: DAHLBERG, Lincoln – Web 2.0 divides: A critical political economy. University of Queensland. s/d. HALL, Stuart – A identidade cultural na pós-modernidade. D&A Ed. Pág. 7-97. KANT, Immanuel – Critica da Razão Prática, Edições 70, 1985. LAYDER, Derek (1994) – “Habermas`s Lifeworld and System” in Understanding social theory. Sage. 2005. Pág. 213-238. STEINER, Linda; OKRUSCH, Chad – Care as a virtue for journalists in Journal of Mass Media Ethics, 2006, 21, pág. 102-122. TAYLOR, Paul; HARRIS, Jan – Critical theories of Mass Media: Then en Now Maidenhed. Open University Press. 2008. Pág. 62-84.

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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Mozart no telemóvel?



Publicamos hoje - dia em que faria 45 anos - um dos poemas* do cinéfilo, musicófilo e cosmófilo, antigo locutor na Rádio Activa, membro do grupo seis da Amnistia Internacional, presidente da Associação Portuguesa de Subbuteo e do Cineclube do Porto.



Final de tarde num Agosto qualquer.

Prenúncio de autocarro cheio em hora de

Ponta. Silêncio entrecortado por ruminantes

Telemóveis. O Pára-arranca do BUS transforma

Passageiros em equilibristas e mesmo em frente

A mim uma mulher com aspecto desgastado

Mata o tempo a carregar nas teclas do

Telemóvel. Que toca. Alto. Abafado o som, é

Interpelada por um idoso com curiosidade

Pelas novas tecnologias. – O seu telemóvel dá

Música? Ignora-o (estava de phones).

- Desculpe, o seu telemóvel dá música? Não era

Nada com a sujeita, entretida a mandar

Mensagens escritas.

O Ancião não resiste, toca-lhe no braço e

repete a pergunta. A sujeita tira um phone do

ouvido e com ar contrariado erra: SIM. DÁ!

Volta a colocar os phones e com enfado, volta

À música e ao teclado do aparelho. Não ouve

(ou não quis ouvir) a pergunta nova do

Incauto: Não dá a 5ª de Mozart, pois não?

Como não obteve resposta, ficou cabisbaixo a

olhar para um vazio enorme, com cara de

arrependido, cogitando certamente se não

deveria ter antes optado por Beethoven ou

Wagner. O alarido continuava noutros lugares

do veículo e eu senti-me também

envergonhado por não ter respondido algo

como – é grande demais para tão minúscula

caixa, não lhe parece?

Porto, 27/8/2002

* "Mozart não cabe no telemóvel" in BASTO, Fernando J. Pinto - Por ti e para ti, Edição de autor, Fevereiro 2005, pág. 71-73.

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Rito amoroso


A dois passos do Dia dos Namorados, lembramos Patrick Traube e a defesa* da boa distância, com tempo para si mesmo - a via do meio para uma relação nutritiva e gratificante, entre a solidão gelada, com demasiada separação, e a fusão aniquiladora, excessivamente próxima.

Texto Dina Cristo


O espaço ideal numa ligação humana e amorosa dá direito à reserva de tempo e área privada, a pedir com precisão e a convidar o outro a solicitar também, a não responder (imediatamente) ou justificar a nossa resposta e conduta, quando tal não nos é solicitado.

A relação destruidora é vazia, doentia, manipuladora e entediante. É um ritual, em que o gesto convencional está vazio de sentido e de valor pessoal; contém jogos manipulatórios, com estratégias para extorquir algo de alguém, destruindo a pessoa. É um passatempo com pouco sentido pessoal, uma actividade, um labor, trabalho alienante. É uma simbiose, o apogeu do jogo neurótico, a apropriação exigente, fusão aniquiladora, devoramento e dependência máxima, canibalismo amoroso, em que alguém se alimenta do outro. Implica uma retirada, medrosa e egoísta, uma rejeição.

Uma relação criativa é, pelo contrário, um rito, um ritual repleto de sentido e valor subjectivo, vivido plena, intensa, consciente e totalmente em que o tempo é saboreado. É um jogo lúdico que dá prazer e emoção. É uma operação, uma acção que produz uma obra, numa relação estreita entre o ser e o fazer e que tem o fim em si mesma. Aqui há intimidade, solicitude, atenção, respeito, tacto – capacidade de tocar o outro – e ter prazer na sua presença. Implica um retiro, uma proximidade sem medo consigo próprio, recentrando-se e revitalizando-se.


*TRAUBE, Patrick – Intimidade. Ed. Sempre-em-pé. 2004.








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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Web: 2-0



A Web 2.0 tem servido mais para separar do que para unir – Lincoln Dahlberg explica como e porquê num artigo* que seguimos hoje, quando estamos a menos de uma semana do Dia da Internet Segura, em que o tema é “Aproximar gerações”.


Texto e fotografia Dina Cristo
Lincoln Dahlberg contrapõe à análise mais habitual da Web 2.0, baseada nas potencialidades de acesso e de participação, um estudo mais amplo. Não se limita à tecnologia e às competências, a saber quem está a fazer o quê, mas avalia as condições que levaram ou não a tal comportamento. Parte de perspectivas sistémicas, críticas e democráticas como a Economia Política Crítica da Comunicação, a norma democrática e a colonização corporativa.

Esta última, recuperada de Habermas, é considerada a causa da divisão digital estrutural, por natureza. Dalhberg não acredita que as desigualdades de acesso possam alguma vez ser eliminadas, dadas as vastas camadas de população que nem sequer infra-estruras possui, como electricidade, mas nota como têm vindo a ser diminuídas, quer pelo investimento privado nas redes móveis quer por instituições (caso da Association for Progressive Communications) ou projectos (como o Widernet) que promovem a comunicação digital.

A redução das desigualdades de acesso à internet em termos gerais e mais particularmente à Web, no caso em estudo a Web 2.0. - que optimiza a interactividade, a geração de contéudo por parte do usuário, os proconsumidores e as redes sociais – tem-se verificado entre países (mais ricos e mais pobres) e dentro dos próprios países, que tendem cada vez a estar mais conectados.

Apesar de reconhecer os últimos avanços na diminuição das barreiras ao nível da acessibilidade e de oportunidade de fazer parte da rede - como a diminuição dos custos, a maior difusão, a facilidade de uso, as possibilidades de produção de conteúdos e sua quantidade e disponibilidade de dados, da comunicação pública mais livre e até o desafio ao sistema que esta evolução representa - Dahlberg não se deslumbra e opta pela reflexão crítica.

Nas suas investigações contrapõe-se ao entusiasmo dos que designa por individualistas, neo-liberais e cyber-libertários, que celebram as potencialidades e oportunidades da Web 2.0, como a de ultrapassar as divisões, não só ao nível digital, on line, como ao nível social, off line.

O acesso por si só não traduz os diferentes modos de se ligar e explorar a Web nem a (in)actividade aí desenvolvida; não significa necessariamente participação e contribuição activa. Dalberg defende a tese de que a Web 2.0 não só tem mantido as divisões digitais como as tem agravado, com repercussões em diferentes dimensões sociais, como a educação, a saúde ou o lazer.

Argumentos acríticos como a inclusão, a igualitariedade, a descentralização ou mesmo a expansão das línguas nacionais estão por realizar. Nas suas observações, o autor verificou e existência de uma pluralidade de desigualdades radicadas desde logo na propriedade e no controlo. São tão avultados os valores das empresas de “media” e telecomunicações digitais que só muito poucos o podem obter. É apontado, entre outros, o caso da Google que adquiriu, por exemplo, a Orkut, o Blogger, o Youtube ou a Doubleclik.

É esta posse, detenção (dos domínios) que permite às grandes corporações o controlo e a hegemonia, expressa, por exemplo, nos seus códigos, licenças ou termos de uso que permitem a apropriação dos conteúdos fornecidos pelos usuários.

Numa economia da atenção, como a do sistema Web, os proprietários determinam quando desejam ver e ser vistos. Usam todo o tipo de estratégias para atrair e manter a atenção dos usuários sobre os seus serviços e produtos, incluindo manipulações e pagamento a «floggers». Adquirem assim grande visibilidade, cada vez mais concentrada em escassas fontes.

Pelo contrário, a grande maioria dos usuários são monotorizados e vigiados, nas suas pesquisas, compras e perfis (re)construídos (e, no caso das redes sociais, também dos amigos), gerando uma quantidade de informação armazenada para posterior venda – incluindo dados privados e pessoais, indispensáveis aquando dos registos.

A exploração dos utilizadores e do seu trabalho, seja ao nível de «crowdsourcing», «outsourcing» ou de conteúdo fornecido, verifica-se não só ao nível da expropriação, fiscalização realizada pelos empregadores mas também de quotas de audiência, fabricadas, focadas nos produtos mais comerciais e depois vendidas às agências de publicidade.

O que é visto, do ponto de vista acrítico, como uma oportunidade de expressão e comunicação, é considerado do ponto de vista crítico como um abuso, controlo e dominação; as alegadas oportunidades de emprego como novas linhas de montagem digital; as alegres escolhas aceites em troca de serviços prestados como falsas, irracionais e previsíveis e a expansão das línguas nacionais da “lifeworld” verdadeiros enclaves dada a dominação de certas línguas no Sistema.

Todas estas desigualdades têm repercussão na divisão ao nível do poder - aceder, participar, adquirir, controlar, chamar a atenção, explorar e vigiar - e de estruturar o discurso [agenda digital] – dominado pelos significados capitalistas, consumistas, comerciais e individualistas, o que leva à exclusão, marginalização, invisibilidade ou ocultação de largas camadas da população, pondo em causa o princípio de igualdade de oportunidades.

Mesmo nas plataformas de maiores potencialidades de participação, como as redes sociais e os blogues, as disparidades estão presentes, nomeadamente ao nível de género, cultura e etnicidade. Nesse trabalho em rede, mulheres e africanos, por exemplo, estão mais ausentes. Predominam os homens e as vozes ocidentais e, agora também, asiáticas.

Além do mais, o trabalho ali executado é, em grande parte, de reprodução dos “mass media”, que imitam, repicam e para os quais estabelecem ligações, bem distante do trabalho criativo de produção. A maioria limita-se à distribuição e disseminação das vozes de “mainstream” enquanto uma larga camada se restringe ao consumo e ao “downloading”. São poucos, pois, os que se destacam tornando-se «vloggers».

São os que têm maior estatuto sócio-económico, mais classe e recursos, os que mais participam, se envolvem e produzem na Web 2.0, os que melhor exploram as oportunidades fazendo crescer o seu capital digital e aumentando a sua influência social.

A Web 2.0 não só reproduz as desigualdades do off line como as reforça, amplia, acentua e agrava. Aqueles que têm melhor posição na sociedade, nomeadamente escolaridade, são também os que mais vantagens – competitivas - retiram da participação on line; mais avançados, são aqueles que mais se adiantam ainda. Enquanto isso, as prometidas vantagens da segunda geração Web traduzem-se para os que nada têm - infra-estruturas, equipamentos, competências e tempo – em oportunidade nenhuma.

O hiato entre incluídos e excluídos, on line e off line, cresce, num momento em que a migração da vida social para o sistema é cada vez maior e as repercussões da presença (no) virtual se reflectem mais e mais na vida de todos os dias. O fosso entre determinados indivíduos, grupos (classe média, jovem e móvel) e instituições, que lucram, e os que, pelo contrário, se desvalorizam aumenta.

Muito do “trabalho a pedido”, simples, rápido, mal pago e de finalização, é hoje recrutado entre os mais pobres e desesperados do mundo, incluindo bairros de lata e campos de refugiados. São estes trabalhadores, que sustentam o próprio sistema económico, político e digital, que dele são ocultados e marginalizados, violando a norma democrática.

Dahlberg vê as situações de desigualdade, estratificação e separação como tendo causas muito mais políticas do que tecnológicas. Entre o determinismo tecnológico, optimista, e o fatalismo, pessimista, defende a organização da contestação política, radical, de defesa da liberdade, igualdade e democraticidade.

Lincoln Dahlberg defende que a desigualdade discursiva é reversível e possível de se conter. O exemplo, a resistência, a popularidade e a visibilidade que representa a Wikipédia é sublinhado pelo autor, designadamente como fonte livre e aberta de trabalho colaborativo, voluntário, para o bem comum.

O 2P2, nó(dulo)s descentralizados, constitui também uma esperança não só para a reunião entre os pares - dispersos, desunidos e desligados - como também para os discursos, alternativos, até agora obscurecidos. Contra-discursos, de contra-culturas de contra-ideologias de contra-poderes, que não irão eliminar, afirma o autor, mas poderão alterar ou, no mínimo, desafiar o poder capitalista neo-liberal.

É preciso, tendo em vista a mudança social, defende, mais e melhor activismo digital, pesquisa crítica e comunicação pública, sem fins lucrativos. Ocupar espaços abertos, usar ferramentas disponíveis - como o micro-blogging Identi-ca, o trabalho colaborativo Crabgrass, a rede social Appleseed, a plataforma de vídeo Kaltura - pode ajudar a consertar a divisão de fragmentação.

As promessas de ultrapassar as barreiras (digitais) ainda estão por cumprir. Falta ainda realizar uma comunicação democrática, igualitária e comum(itária), efectivamente activa, produtiva, diferente e livre. Uma forma de expressão e de (re)conexão cooperativa, justa e benéfica em que o empreendedorismo comunicativo, cultural e genuíno de gente comum não seja engolido por gigantes sistémicos.

* DAHLBERG, Lincoln - Web 2.0 divides: a critical political economy. University of Queensland.

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