quarta-feira, 16 de maio de 2012

Comunicação maravilhosa


Este Domingo, em várias cidades portuguesas, vai-se sentar e caminhar em paz - precisamente no mesmo Dia Mundial das Comunicações, dedicado ao silêncio, cuja criação vamos espreitar.

Texto Manuel Oliveira de Sousa fotografia Dina Cristo



A história da comunicação poder-se-á confundir com a história humana(1). Porém, a comunicação de massa considera-se, genericamente, que teve o seu início em Guttenberg, com a invenção da imprensa. Aos livros produzidos em série a partir do século XV e os primeiros jornais no século XVII foi-se acrescentando o cinema, no fim do século XIX, a rádio e, depois, a televisão no início do século XX. A Igreja, porém, acompanhava tais meios com desconfiança, permitindo assim que muitas pessoas sentissem a sua utilização com fins pouco virtuosos.
O decreto Inter Mirifica (2) (IM) surgiu como que uma necessidade para orientar os cristãos e convocá-los para um uso correto dos meios de comunicação. Foi uma maneira de reconhecer a importância da comunicação de massa como meio capaz de movimentar indivíduos e sociedades e o seu valioso auxílio para o desenvolvimento do ser humano e para a evangelização.
Inter Mirifica é o segundo dos dezasseis documentos publicados pelo Vaticano II. Aprovado a 4 de dezembro de 1963, assinala o primeiro momento em que um concílio da Igreja aborda a problemática, a comunicação. Este documento revestiu-se, e reveste-se, de particular importância pela oportunidade, por dar escala, e por alguns elementos cujo conteúdo projetou ad intra, no seio da própria Igreja Católica, mas também ad extra, para a sociedade, para o mundo. A Igreja assegura a obrigação e o direito de utilizar os instrumentos de comunicação social. Além disso, este decreto apresenta a primeira orientação geral da Igreja para o clero e para os leigos sobre o emprego dos meios de comunicação social. Passou a existir uma referência sobre a posição oficial da Igreja na matéria.
Porém, desde o primeiro momento, o tema não foi pacífico de tratar o que, só por si, releva, a esta distância, a importância dada à compreensão sobre tal assunto, o texto e contextos naquele período histórico da Igreja e do Mundo.
O decreto Inter Mirifica foi preparado antes da primeira sessão do Vaticano II, pelo Secretariado Preparatório para a Imprensa e Espetáculos (novembro de 1960 a maio de 1962). O esboço do documento foi aprovado pela Comissão Preparatória Central do Concílio. Posteriormente, em novembro de 1962, o documento foi debatido na primeira sessão do concílio e o esquema, aprovado, mas o texto foi considerado muito vasto. A drástica redução do texto deu espaço a conotações e margem para as mais variadas conclusões. Durante o primeiro período conciliar, os 114 artigos foram reduzidos para 24 e submetido novamente à assembleia, em novembro de 1963. A apuração dos votos registrou 1598 "sim" contra 503 "não". Inter Mirifica foi o documento do Vaticano II aprovado com o maior número de votos contra, o que demonstrará um pouco da singularidade.
Pode-se ainda sublinhar, para encerrar este enquadramento, que os resultados do Concílio Vaticano II deixaram, de modo geral, a maioria dos católicos satisfeitos; porém, também houve contestação. Os conservadores censuraram o concílio pelas suas tendências ecuménicas e modernistas, e insistiram na continuidade do passado. Por outro lado, os progressistas queixaram-se de que, embora o concílio tenha feito algum progresso, falhou no tratamento das estruturas hierárquicas da Igreja. E argumentaram que o sentido real do concílio estaria na sua inovação, aplaudindo a decisão do Vaticano II de romper com o “juridicismo”, o clericalismo e o triunfalismo dos tempos pré-conciliares.
O texto conciliar, desde logo antecipado nos dois números do proémio, possui uma organização interna do texto e dos respetivos conteúdos assente no binómio importância e subsídios do Decreto para a sociedade e comunicação – ad extra – e assunção da transformação do pensamento e ação da Igreja – ad intra. Isto mesmo é refletido nos dois capítulos que, nos seus 24 números, como foi referido anteriormente, tratam o pensamento da Igreja Católica, pela primeira vez, ao nível pontifício, sobre a comunicação de massa e aponta para várias iniciativas que ao longo dos anos se foram concretizando: criação do secretariado pontifício e secretariados nacionais, dia mundial da comunicação social, instruções pastorais, associações internacionais.
O primeiro propósito está no acolhimento que o Vaticano II dá aos instrumentos de difusão da comunicação em massa, IM, 1: “Entre as maravilhosas invenções da técnica que, principalmente nos nossos dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas, a santa Igreja acolhe e fomenta aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito humano e abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens”.
Sucede, a este primeiro propósito, o contributo concetual, novidade até então, acerca destas maravilhosas invenções da técnica. Há um elemento concetual. O documento refere-se aos instrumentos de comunicação, tais como imprensa, cinema, rádio, televisão e outros meios semelhantes, que também podem ser propriamente classificados como meios de comunicação social (IM, 1). Estava encontrada a matriz para expressar na generalidade o que só se sabia dizer na especificidade.
Reconhecida importância e “batizada” a essência da maravilha que se abre à humanidade na reprodução mecânica, surge, na segunda parte da nota introdutória, os desígnios axiológicos e teleológicos que convém cuidar, com a convicção que “aproveitarão não só ao bem dos cristãos, mas também ao progresso de toda a sociedade humana” (IM, 2).
Legitimando a utilização destes instrumentos numa dialética permanente entre a importância e o reto uso, estabelece as normas necessárias a esse fim.
Porém, provavelmente a maior contribuição do Inter Mirifica, foi a sua assertividade sobre o direito de informação. É intrínseco à sociedade humana o direito à informação sobre aqueles assuntos que interessam aos homens e às mulheres, quer tomados individualmente, quer reunidos em sociedade, conforme as condições de cada um (IM 5). Residirá aqui a mais importante declaração do documento; este trecho demonstra que o direito à informação foi visto pela Igreja não como um objeto de interesses comerciais, mas como um bem social. Dezassete anos depois o Relatório MacBride(3) iria além do "direito à informação" ao defender o "direito à comunicação".
O primeiro capítulo ainda aborda temas como a opinião pública, já considerada anteriormente por Pio XII. E dirige-se ao público em geral, não apenas ao que está ativamente envolvido com os meios de comunicação, mas também ao recetor das mensagens.
O número doze foi um dos mais polémicos. Analisa o dever da autoridade civil de defender e tutelar uma verdadeira e justa liberdade de informação. Este artigo foi interpretado, especialmente por alguns jornalistas americanos, como sendo contra a liberdade de imprensa. Realmente, o Inter Mirifica justifica a interferência do Estado, a fim de proteger a juventude contra a "imprensa e os espetáculos nocivos à sua idade" (IM 12).
Em latim civilis auctoritas (autoridade civil) tem significado diferente de publica potestas (poder público). A tradução, em diversas línguas, acabou por reduzi-los a "sociedade civil". No entanto, atribuir direitos e deveres à sociedade civil não parece ser a mesma coisa que atribuí-los às autoridades públicas, aos governos.
Na segunda parte do documento, surgem os contributos para a transformação do pensamento e ação da Igreja – ad intra.
Desde os parágrafos introdutórios que é sublinhado o direito da Igreja usar os instrumentos de comunicação social. Só por si, este elemento, potencia e universaliza as potencialidades da comunicação. Mas desde logo reivindica, como direito inato, o uso e a posse de todos os instrumentos desse género, que são necessários e úteis para a formação cristã e para qualquer atividade empreendida em favor da salvação do homem (IM 3).
Incidindo mais na ação pastoral da Igreja, no uso da comunicação social, tanto o clero como o laicado foram convidados a empregar os instrumentos de comunicação no trabalho pastoral. Enumeram-se então diretrizes gerais, referentes à educação católica, à imprensa católica e à criação de secretariados diocesanos, nacionais e internacionais, de comunicação social ligados à Igreja (IM 19-21). São sugeridas medidas para que se consagre um dia por ano à instrução do povo no que tange à reflexão, discussão, oração e deveres em relação às questões de comunicação - Dia Mundial das Comunicações (IM 18) (4). Do mesmo modo, determinou a elaboração de uma nova orientação pastoral sobre comunicação, "com a colaboração de peritos de várias nações", sob a coordenação de um secretariado especial da Santa Sé para a comunicação social (IM 23).
O Papa Paulo VI relevou a importância do Inter Mirifica. Contudo, percebe-se que, se este decreto tivesse sido discutido mais no final do concílio, após as muitas sessões consagradas à Igreja no mundo moderno e à liberdade religiosa, o texto do Inter Mirifica teria sido particularmente mais enriquecido. O decreto olhou para o passado e não para o futuro, olhou mais para dentro e pouco para fora. Não aproveitou as realizações criativas do profissionalismo e da prática secular em comunicação de massas, como forças que articulam os meios de comunicação. Por exemplo, anúncios, marketing, relações públicas e propaganda.
Em síntese, apesar das limitações, ressaltam aspetos positivos que é sugestionável destacar.
Transformou em objeto de atenção por parte da Igreja e suscitou o desenvolvimento em dimensões maiores ou menores, segundo o interesse e a "inculturação" da Igreja nas mais diversas realidades.
Assinalou uma mudança em relação aos media e, um Concílio ao abordar o assunto, a comunicação, deu independência ao tema dentro da Igreja.
Fez algum avanço em relação aos documentos anteriores, ao conferir à sociedade o direito à informação (IM 5), à escolha livre e pessoal, em vez da censura e da proibição (IM 9). Além de reconhecer que é dever de todos contribuir para a formação das dignas opiniões públicas (IM 8), o decreto assume os instrumentos de comunicação social como indispensáveis para a ação pastoral; o Inter Mirifica oficializa o Dia Mundial das Comunicações (5), o único indicado por um concílio da Igreja.
Introduziu um novo conceito na abordagem ao fenómeno da comunicação.
Inaugurou um trajeto de reflexão, aprofundamento académico e ação através dos diversos meios de comunicação social e redes sociais. Desatacam-se, a nível pontifício, como resposta pastoral ao decreto Inter Mirifica (1963), a instrução Communio et Progressio (6) que o papa Paulo VI promulgou em 1971.
Depois João Paulo II, com a Aetatis novae (22.2.1992); os documentos do Conselho Pontifício das Comunicações Sociais Ética na publicidade (1997), Ética nas Comunicações Sociais (2000) e Ética na Internet (2002); de referir ainda a Encíclica Redemptor hominis (7.12.1990) e a Carta Apostólica no 40º aniversário da Inter Mirifica (21.2.2005) sobre o grande desenvolvimento dos media, ambas de João Paulo II. Todos os anos, desde 1966, pela Ascensão, se celebra o Dia Mundial das Comunicações Sociais, para o qual o Papa publica, com a data da festa de S. Francisco de Sales (24.1), uma mensagem. São instrumentos de comunicação social da Santa Sé: a Tipografia Vaticana (desde meados do séc. XV), o diário L’Osservatore Romano (desde 1861) e suas edições semanais mais recentes em 7 línguas, a Libreria Editrice Vaticana (desde 1926), a Rádio Vaticana (desde 1931) e o Centro Televisivo Vaticano (desde 1983).
Em Portugal, os Bispos, perante o clima adverso dos inícios do séc. XX e depois no tempo da renovação (a partir dos anos 20), deram particular atenção à imprensa regional de inspiração cristã, tendo sido criados por essa altura a maioria dos jornais diocesanos e o diário Novidades (nas mãos do Episcopado, de 1923 a 1974). Foi também assinalável a publicação de livros católicos (da União Gráfica e outras editoras) e de diversos jornais e revistas, sobretudo dos institutos religiosos. Respondendo a apelo de Zuzarte de Mendonça na revista Renascença (1933), foi lançada, inicialmente sob a égide da Acão Católica Portuguesa, a Rádio Renascença, Emissora Católica Portuguesa (com emissões desde 1937) que, sob a gestão, durante 30 anos, de Monsenhor Lopes da Cruz, passou a ser a estação de rádio mais ouvida.
Mais recentemente, para além de serviços pastorais específicos, como Secretariados Diocesanos e nacionais da Comunicação Social, foi criada a Agência Ecclesia com diversidade de plataformas.
Falharam, porém, as tentativas de um canal de televisão (Canal 4)
Referência bibliográficas:
HABERMAS, Jurgem (1986). Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Biblioteca templo universitário.
MACLUHAN, Marshall (1996). Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix.
MENDIETA, Eduardo e VANANTWERPEN, Jonathan (Coord.) (2011). The power of religion in the public sphere. New York: Columbia University Press.
BENTO XVI (2006). Os mídia: rede de comunicação, comunhão e cooperação. Em 24 de janeiro.
JOÃO PAULO II (2002). Os meios de comunicação social e a nova evangelização. Em 1 de Março.
JOÃO PAULO II (2005). O rápido desenvolvimento. Em 24 de janeiro
JOÃO PAULO II (2001). Carta apostólica Nuovo Millenio Ineunte. Em 6 de janeiro
VATICANO II (1962-1965). Decreto “Inter Mirifica” sobre os meios de comunicação social (1963), in Concílio Ecuménico Vaticano II (19839). Braga: Editora AO, pp. 42-52.

(1) É interessante fazer uma análise sinótica com Walter Benjamin, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução.
(2) Designado em latim, como é comum nos documentos oficiais da Igreja Católica, por ser a língua institucional da Igreja sediada em Roma, e por, na tradição da Igreja, serem as primeiras palavras dos documentos que os intitulam. No caso, “Inter mirifica…”, isto é, “Entre as maravilhosas…”.
(3) MacBride - Many voices, one world: communication and society today and tomorrow (Unesco, 1980) (Muitas vozes, um só mundo: comunicação e Sociedade agora e no futuro).
A comunicação, atualmente, é material de direitos humanos. Mas é interpretada cada vez mais como um direito à comunicação, indo além do direito de receber comunicação ou de ter acesso à informação (MacBride 172).
(4) Em Portugal, a Conferência Episcopal instituiu o Domingo em que se celebra a Ascensão de Jesus ao céu.
Esta solenidade foi transferida para o 7º domingo Páscoa desde seu dia originário, a quinta-feira da 6º semana de Páscoa, quando se cumprem os quarenta dias depois da ressurreição, conforme o relato de São Lucas em seu Evangelho e nos Atos dos Apóstolos; mas continua conservando o simbolismo da quarentena: como o Povo de Deus esteve quarenta dias em seu Êxodo do deserto até chegar à terra prometida, assim Jesus cumpre seu Êxodo pascal em quarenta dias de aparições e ensinamentos até ir ao Pai. A Ascensão é um momento mais do único mistério pascal da morte e ressurreição de Jesus Cristo, e expressa sobretudo a dimensão de exaltação e glorificação da natureza humana de Jesus como contraponto à humilhação padecida na paixão, morte e sepultamento.
Ao contemplar a ascensão de seu Senhor à glória do Pai, os discípulos ficaram assombrados, porque não entendiam as Escrituras antes do dom do Espírito, e olhavam para o alto. Aparecem dois homens vestidos de branco, é uma teofania, a mesma dos dois homens que Lucas descreve no sepulcro (24,4). Neles a Igreja Mãe judaico-cristã via acertadamente a forma simbólica da divina presença do Pai, que são Cristo e o Espírito.
(5) Em 2011 celebrou-se o 45º, sob o tema, Mensagem do Papa Bento XVI, “Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital”.
(6) Trata-se de um documento pastoral da Igreja que não tem caráter dogmático. Não é uma encíclica, nem um documento conciliar da Igreja como o Inter Mirifica. A Communio et Progressio foi escrita pela Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social. De fato, o nome completo do documento é "Instrução Pastoral para a aplicação do Decreto do Concílio Ecuménico Vaticano II sobre os Meios de Comunicação Social". O documento, marcado pela abertura que caracterizou os documentos do concílio, mas sobretudo a evolução das mentalidades nos anos seguintes, desenvolve-se em 187 artigos e distingue-se do decreto Inter Mirifica particularmente pelo seu estilo.

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