quarta-feira, 7 de março de 2012

Ser cuidadoso



Na véspera do Dia Internacional da Mulher, seguimos de perto um artigo* que reflecte sobre o valor da atenção, dedicação e amor ao outro.

Texto Dina Cristo


A Ética da Justiça e dos Direitos Humanos, formalista, masculina e individualista, levou à adopção, por auto-defesa, dos valores da objectividade, neutralidade, imparcialidade, distanciamento e ao jornalismo de mera observação, como refere Bell.

A Ética liberal, universalista, não prescritiva, monológica, impessoal e independente, egocêntrica e baseada no Self provocou, segundo os autores, uma crise de Imprensa que se traduz quer na separação entre audiência e jornalistas (como no caso da política entre eleitores e eleitos) quer no seu conflito de identidade entre a personalidade pessoal (ansiosa por cuidar) e profissional (forçado pelas exigências redactoriais) gerando constrangimento, desconforto e frustração.

Os defensores da Ética do Cuidado, que a reviram e aplicam à profissão, propõem a sua versão política como um modelo complementar ou mesmo alternativo ao dominante. Esta Ética da compaixão afirma que os valores dos vínculos, praticados até aqui sobretudo ao nível doméstico e local, têm condições, podem e devem também ser aplicados à esfera pública (e não apenas privada) e transnacional (ultrapassando o âmbito local).

A ética do Cuidado tem por base a relação, a (re)ligação com a comunidade, com o colectivo, o contexto [cf. Grierson], no âmbito de uma responsabilidade social. Propõe a expressão da subjectividade, da parcialidade e da aproximação como um envolvimento que não anula o desenvolvimento ou a realização, pelo contrário. Trata-se de uma Ética que defende não só a tomada de posição, e ligação ao(s) outro(s), como o dever de as assumir e explicitar tal como os interesses e experiências. Como afirma Bell, uma ética que não se mantém neutral entre o certo e o errado, a vítima e o opressor e que, entre o bem e o mal, toma posição.

Esta proposta revisitada é mais feminina, emotiva, afectiva, sensível, pessoal e (inter)dependente. É uma ética que não apenas se ocupa de pessoas e dos seus problemas mas com eles se preocupa e «pós-ocupa». Uma ética em que a caridade é uma virtude a ter em conta nas instituições, designadamente jornalísticas.

Os autores afirmam que o jornalismo sempre foi uma profissão atenta e cuidadosa, quer em relação aos acontecimentos internacionais quer em relação às reacções provocadas; além dos valores profissionais, como verdade, credibilidade, exactidão e justiça, o jornalismo possui valores democráticos de uma vida cívica; uma profissão séria e deliberativa, descrita por vezes como apaixonante.

Mas se hoje, com o Jornalismo Público, os profissionais exigem da audiência uma maior preocupação e envolvimento com os assuntos públicos, deverão ser eles os primeiros a dar o exemplo e, de facto, a cuidarem devidamente do seu trabalho, das palavras que (ab)usam ou não, dos actos perante as fontes de informação e pessoas (in)directamente relacionados com o facto a conhecer e relatar. Tal implica uma nova atitude que começa na atenção e termina na compreensão, sem esquecer a responsabilidade e a competência.

O género tradicionalmente mais dedicado ao cuidado dos outros é o feminino e em termos de profissões as que estão mais associadas a pequenos grupos e ao contacto pessoal, tais como amas, enfermeiros ou professores. Quer se trate de trabalho voluntário, desinteressado, praticado naturalmente ou não são tarefas que exigem muito maior intensidade, nomeadamente em tempo e dedicação, possuindo menos autonomia, e que em termos salariais, quando este existe, é menor.

Estas pessoas realizam as suas funções de forma (mais) generosa, humana e frequentemente sem julgamentos, em ambientes domésticos e com um vocabulário mais sentimental (como a designação de Mãe-Terra). São precisamente estes cuidadores, subordinados, desautorizados, marginalizados, e discriminados pelos “media”, que também mais sofrem e precisam de carinho. Uma necessidade que pode e deve ser satisfeita pelos órgãos de comunicação social, fazendo novas e mais perguntas, dando-lhes voz activa e ocasião para serem ouvidas.

Ajudar homens e mulheres em sofrimento é um tema público, que requer deliberação a esse nível, sobre que histórias escolher, quem ouvir, o que citar, como relatar, enfim, o quê e quem mais precisa e merece atenção colectiva. Uma reflexão, análise e decisão moral, numa profissão, com agentes, modos de produção, respostas e, agora, epistemologia também ela moral.

Numa altura de grande circulação de textos e sobretudo de imagens, com o seu fácil acesso e eficácia afectiva; de constituição de comunidades cada vez mais independentes dos lugares [cf. Hall] construindo novos espaços sociais; com uma audiência cada vez mais consciente do sofrimento humano à escala global e cada vez mais pessoas ansiosas por ajudar, incluindo os próprios jornalistas, este novo hábito de tratar atenta e cuidadosamente as pessoas, estejam elas a montante ou a jusante do trabalho informativo, traz várias oportunidades.

Estas histórias assim contadas pelos jornalistas, e sem indiferença, podem levar outros repórteres a também prestarem atenção a estas vozes cuidadoras, inspirando o cuidado a nível geral, florescendo assim, uma auto-ajuda mútua a nível mundial. Foi o que ocorreu com o “Live Aid” [em 1985]. Ver e ouvir, cuidar de quem cuida [caso das ONG], levará, antes de mais, a aliviar o sofrimento e a reduzir a sensação de isolamento, com o benefício da interacção quase mediada.

Conteúdos atentos às propostas políticas para a (re)solução do sofrimento e elaborados cuidadosamente poderão levar, segundo as autoras, a que se passe da benevolência à efectiva beneficiência, do sentimento de bondade ao serviço social, da pena distante e geral à compaixão próxima e concreta. Uma das maiores vantagens será a manifestação de uma política global de solidariedade colectiva, como afirma Frase, fruto da conjugação entre a Individualidade e a Humanidade, entre o campo institucional e o da intimidade.

Esta Ética do Cuidado, que contém a da Justiça, tem condições e deverá integrar a da Virtude, nomeadamente enquanto forma de conhecimento, numa pesquisa, recolha, selecção e edição virtuosas com todos os efeitos positivos daí decorrentes, designadamente para profissionais e público. Para as autoras, o Jornalismo Público integrou e deve aprofundar a integração da Ética do Cuidado, ao ter como conceitos fortes precisamente o cuidado, a conexão e a ligação.

Além do mais, a Ética do Cuidado pode completar a sub-teorização do Jornalismo Público enquanto este tem para oferecer à Ética do Cuidado o movimento prático que impulsionou. O cuidado servirá igualmente para evitar o isolamento ao nível do hiper-local das experiências do também chamado Jornalismo Cívico, alargando as suas fronteiras para comunidades ao nível transnacional.

Esta reconexão global manifesta os princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, herdeiros da Revolução Francesa, correspondentes ao estágio pós-convencional de Kohlberg, indicativo de um desenvolvimento moral em que o círculo de compaixão e caridade se expande até ao nível universal expressando preocupação em relação a toda a Humanidade – atingida pelos jornalistas cívicos e de investigação - depois da responsabilidade para com a família e amigos, característico da etapa convencional, e distante da primeira fase, a pré-convencional, restrita ao pensamento egoísta.

* STEINER, Linda; OKRUSCH, Chad – Care as a virtue for journalists in Journal of Mass Media Ethics, 2006, 21, pág.102-122.

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