Nesta quarta parte ecoamos o modo como a rádio tratou alguns dos principais acontecimentos dos anos 60.
Texto e fotografia Dina Cristo
Em 1962, teve início a primeira emissão da Rádio Portugal Livre, a 12 de Março: “Aqui Rádio Portugal Livre. Fala Rádio Portugal Livre. Uma emissora Portuguesa ao Serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional”(1). Duraria mais 13 anos, fazendo contra-propaganda, sob a orientação do PCP. Contudo, “A audição era bastante pequena, segundo suponho e ao contrário do que na época afirmava a direcção do Partido”(2), escreveu Rui Perdigão.
Pouco depois, em Abril, estalou a crise académica de 1962, causando a demissão de Marcello Caetano da Universidade Clássica de Lisboa e a saída do director da PIDE, Homero de Matos. Nos anos seguintes, a guerra africana alastrou, primeiro à Guiné, em 1963, e depois a Moçambique, em 1964.
Em 1965 Humberto Delgado é assassinado e o seu corpo e da sua secretária descoberto em Villanueva del Fresno. Logo que informado, José do Nascimento seguiu para Espanha, conseguindo enganar os militares armados, que fiscalizavam o acesso ao local. As expectativas de conseguir trazer uma reportagem gravada não se concretizaram, já que todos os intervenientes (o sub-delegado de saúde, o motorista, o menino que descobriu os corpos, a polícia local e até o povo) se recusaram a falar (3).
Quando chegou ao RCP, e se preparava para contar aos ouvintes a sua aventura, foi impedido. “Paradoxalmente eu, que não havia conseguido uma palavra dos espanhóis e só poderia descrever o que tinha visto, fui proibido pelo antigo SNI de continuar o meu relato ao microfone (…)”(4). António Caetano Carvalho, funcionário superior do SNI, telefonou para o RCP proibindo a transmissão de informações sobre Humberto Delgado: “Vocês deram há pouco uma notícia relativa ao facto de terem enviado um enviado especial a Espanha. Há instruções superiores no sentido de as notícias relativas a este acontecimento, desde que não sejam das agências autorizadas, carecerem de autorização da censura”(5).
Pelo funeral de Humberto Delgado, a rádio transmitiu o som fúnebre do seu enterro. A reportagem descreveu a urna, coberta pela bandeira portuguesa, em seda, tendo desenhado o escudo da Força Aérea e o povo, imenso, que (quando deu entrada na nave do Santo Condestável) se reunia em redor, aplaudindo vibrantemente(6) .
O ano de 1965 não terminaria ainda sem a extinção, assalto e destruição da Sociedade Portuguesa de Escritores, devido ao prémio atribuído ao livro “Luuanda” de Luandino Vieira, então no Tarrafal.
Em 1966, quando Américo Tomás comemorou oito anos à frente da presidência da República, o “Diário Sonoro” abriu com o aniversário da reeleição do chefe de Estado: “Passa hoje mais um ano sobre a data em que o almirante Américo Tomás foi reeleito chefe do Estado, em confirmação do seu anterior mandato”(7). Na presidência da República, acrescentava ainda a notícia, foram recebidas, por tal motivo, muitas saudações, procedentes de todos os pontos do país.
O noticiário nacional, com mais de dez minutos, incluía uma notícia sobre a abertura de uma agência do Banco de Crédito Comercial de Benguela, como forma de extensão dos estabelecimentos de crédito metropolitanos às províncias; um comunicado da Polícia de Segurança Pública (2’20’’) apelando ao pagamento de imposto sobre as viaturas importadas, numa linguagem eminentemente escrita e rebuscada; a informação sobre a recepção, nos paços do Concelho lisboeta, de uma representação da colónia portuguesa, residente na República do Congo ex-Belga, que veio a Portugal assistir às comemorações do 40º aniversário da revolução nacional e outras notícias, como os exames para ingresso na universidade, e o Campeonato Mundial de Futebol, com um comentário de João Saldanha, da Rádio Nacional do Brasil: “Parabéns a Portugal. Parabéns pela brilhante participação na copa do mundo(…)”(8).
Artur Agostinho terminava a intervenção no radiojornal: “Senhores ouvintes este o comentário que se nos oferece fazer agora, neste momento, e que talvez possamos completar um pouco mais tarde com outros apontamentos e outras sugestões, que nos tenham sido oferecidas por este encontro dramático entre Portugal e a Inglaterra. Por agora é tudo”(9). Artur Agostinho relatou ainda, em directo, o desfecho do campeonato, em que pela primeira vez Portugal ficou apurado para a fase final.
Em 1967, o Papa Paulo VI visitou Fátima, para assistir às cerimónias comemorativas do 50º aniversário do 13 de Maio, o que levou a uma movimentação inusitada de meios técnicos e humanos, e mais de 850 acreditações de jornalistas estrangeiros, “tendo a Emissora Nacional mobilizado todo o seu pessoal e meios técnicos de que pôde dispor”(10). Contudo, “não houve nada de novo no plano técnico. As transmissões fizeram-se como todas”(11).
O “PBX”, programa que se havia estreado em 1967, reportou as inundações de Lisboa, adquirindo uma função de serviço público e prolongando-se ao longo da madrugada: “(…) o trabalho de reportagem e de cobertura do trágico acontecimento foi de tal ordem que o programa acabou por se transformar numa espécie de centro de informações e de comunicações. Os bombeiros, a polícia e as diversas entidades envolvidas no sinistro davam informações, faziam apelos, pediam notícias”(12). Os produtores do “PBX”, Parodiantes de Lisboa, comemoravam 20 anos aos microfones da rádio, fazendo humor, nesse mesmo ano de 1967.
Salazar exonerado
Em 1968, dois dias após um acidente vascular, que se seguiu à queda da cadeira de Salazar, um relatório médico explicou o estado de saúde do Presidente do Conselho. “(…) Um dia depois do aparecimento das primeiras manifestações patológicas foi feito o diagnóstico do hematoma e da sua localização e realizado o trabalho cirúrgico apropriado. O presidente teve uma recuperação notável e dois dias depois da operação os sintomas tinham desaparecido a ponto de se poder considerar em vias de atingir o seu estado normal. Infelizmente, o regresso às suas actividades habituais foi subitamente interrompido há dois dias por um acidente vascular cerebral, hemorragia no hemisfério cerebral direito. Esta hemorragia não teve qualquer relação com o hematoma sub-dural de que anteriormente sofreu, mas foi consequência da ruptura de uma artéria cerebral. Uma hemorragia intra cerebral é uma lesão grave que ameaça a vida do doente. O presidente está a lutar valorosamente para vencer a lesão do seu cérebro(…)”(13).
No dia 10 de Setembro, João Patrício, comentador político da EN, responsável pelos editoriais e notas do dia, afirmava aos microfones a influência de Salazar: “O prestígio do Doutor Salazar é realidade incontroversa, que não poderá minimizar-se ou negar-se. Ao tomar o País conhecimento de que o Doutor Salazar adoecera e havia sido submetido a delicada intervenção cirúrgica, logo, por toda a parte, se geraria espontâneo e colectivo movimento de ansiedade e de simpatia e de respeito pela sua figura prestigiosa. Sentia-se que a Nação lhe entregava, uma vez mais, o coração e se reunia à volta de si para, como ele, lutar e vencer nova crise – agora em combate contra a doença”(14).
A 26 de Setembro de 1968, Américo Tomás, sonoramente emocionado, exonerou Salazar e indigitou Marcello Caetano como novo Presidente do Conselho: “Continuando muito gravemente doente, o presidente do Conselho, Dr. António Oliveira Salazar, e perdidas todas as esperanças, mesmo que sobreviva, de poder voltar a exercer em plenitude as funções do seu alto cargo, atendendo a que superiores interesses do país têm de prevalecer sobre quaisquer sentimentos, por maiores e mais legítimos que pareçam, circunstância que obriga à decisão dolorosa de substituir na chefia do Governo o Dr. Oliveira Salazar, tendo ouvido o Conselho de Estado e não devendo adiar por mais tempo é, no entanto, com profunda amargura, só minorada pelo que dele directamente colhi, de que não desejava morrer no desempenho das suas funções, que o uso da faculdade conferida pelo número primeiro, do artigo 81 da Constituição, exonero o Dr. António Oliveira Salazar do cargo de presidente do Conselho de Ministros, do qual manterá todas as honras a ele inerentes, e para o substituir nomeio, nos termos do mesmo preceito constitucional, o Dr. Marcello José das Neves Alves Caetano”(15).
No dia seguinte, João Patrício intitulava o seu comentário de “renovação na continuidade”: “A mensagem dirigida pelo chefe do Estado a comunicar ao País aquela histórica decisão é um documento que, pelo seu valor patriótico e humano, todo o português subscreveria. O respeito pela unidade e pela fidelidade aos princípios defendidos toda a vida por Salazar será, nesta hora suprema, um motivo de máxima meditação e a mais elevada homenagem a prestar ao grande Português que tanto honrou e engrandeceu a Pátria comum. Foi constante pensamento político de Salazar que os Governos do Estado Novo eram sempre o mesmo governo; só os homens mudam de vez em quando. Renovação na continuidade”(16).
Na era salazarista, João Patrício havia comentado temas como a entrevista de Salazar à revista “Extra”, o seu 36º aniversário como presidente do Conselho, o seu discurso de 23 de Setembro de 1966, a tomada de posse dos comandantes gerais da PSP e Legião Portuguesa, a construção da barragem de Cabora-Bassa, a emigração para o Ultramar e o esmagamento da Checoslováquia. Goa não fora esquecida: “Goa, pelo coração e pela história, continua a ser orgulhosamente portuguesa. Politicamente, também. Só a administração e a soberania locais nos foram clamorosamente usurpadas pela garra rapace da falsamente pacífica União Indiana. Há duas situações de facto: a realidade da usurpação e a realidade da permanência espiritual lusíada em terras distantes da costa do Malabar, a despeito dessa ignominiosa usurpação. São duas realidades incontroversas: uma promanada de um acto de violência e de injustiça internacionais; a outra, resultante de um acto de são e exemplar sentimento de amor pátrio”(17).
Em comentário à encíclica “Humanae Vitae” de Paulo VI, nomeadamente à anti-concepção, João Patrício afirmava. «Com efeito, segundo dados fornecidos por especialistas responsáveis, “dos 50 por cento dos solos do Planeta passíveis de cultivo, só 10 por cento produzem actualmente, restando ainda 40 por cento para serem utilizados na luta contra a fome”. Não têm, portanto, os neomalthusianistas razão para fundamentarem o emprego da limitação científica da natalidade no drama natural da subalimentação nem recearem uma constante ascensão demográfica. Há, assim, dois problemas morais convergentes: o anti-concepcionismo, por um lado, antinatural, condenado por Deus; e o egoísmo e premeditado abandono de terras cultiváveis, igualmente antinatural e verberado por Deus. “A vida humana – segundo João XXIII, citado por Paulo VI – é sagrada; desde o seu alvorecer compromete directamente a acção criadora de Deus»(18).
(1) PERDIGÃO, Rui – O PCP visto por dentro e por fora, pág.52. (2) Idem, pág. 58. (3) A. H. RDP. 01/11/1976. AHD 10584. (4) Idem, ibidem. (5) A.H. RDP. RCP. 1965. AHD 584. (6) A.H. RDP. RDP. 01/11/1976. AHD 10584. Extracto 11. (7) Idem, EN 1966. (8) Idem, ibidem. (9) Idem, ibidem. (10) “60 anos de rádio em Portugal”, pág.305. (11) CRISTO, Dina – “Rádio anos 60”, pág. 2. (12) MAIA, Matos - Telefonia, Círculo de Leitores, pág.278. (13) A.H. RDP. EN 01/09/1968. AHD 1922. Faixa 10. (14) “Editoriais e notas do dia. Das realidades aos mitos”, pág. 30. (15) A.H. RDP. EN 26/09/1968. (16) Op. Cit. Pág. 34. (17) Idem, pág. 18. (18) Idem, pág. 26.
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