quarta-feira, 26 de maio de 2010

França Morte

Antes do Dia do Pescador, na Segunda-Feira, editamos o perfil de um dos homens mais empreendedores da indústria pesqueira, publicado há 15 anos na edição nº589 do semanário "Vida Económica".

Texto e fotografia Dina Cristo

Navios. Desenhar, construir, transformá-los. É a sua paixão. Foi ao longo da sua vida. O primeiro “empreendimento” começou teria França Morte uns 16 anos. Juntou-se aos amigos e pôs de pé um barco de vela latina. Durante três anos, a obra fez a travessia entre o Barreiro, sua terra natal, e Lisboa. Foram tempos de passeios. “Andávamos a valer”, recorda.
Depois desta experiência, entra na Escola Náutica. Começa a sentir gosto pelos navios e a valorizá-los. A sério. Aos livros, presta uma atenção até então não dispensada. Faz o curso com “bastante gosto” e agarra a vida activa “com bastante interesse”. Paralelamente às lições, trabalha como desenhador de navios. É o início de uma relação profissional que permanece até agora, aos 72 anos, numa altura em que fez, na Miradouro, 25 lançamentos de navios.

De empregado a empresário

Durante seis anos, até 51, embarca como oficial maquinista. Faz o acompanhamento da construção de navios, inclusive na Inglaterra. Durante os dois anos seguintes é responsável técnico de vapor e energia na montagem de uma fábrica de celulose, no âmbito da qual faz um estágio de seis meses nos Estados Unidos. De volta aos navios, entra na Empresa de Pesca de Aveiro, onde transforma navios de guerra noutros para pesca do atum. É director técnico, projecta uma frota e dirige a sua concepção técnica. Até 65.
Com 42 anos toma a decisão, a partir daqui sucessiva, de ir mais longe. Neste caso, de criar a sua própria empresa. Decide baseado na sua capacidade de projectar navios e na exigência da actividade piscatória. A pesca, para ter êxito, afirma, necessita de pelo menos duas condições: uma concepção técnica, arquitectónica e económica adequada ao fim a que se destina o navio e uma manutenção técnica bem feita.
Tudo o que tinha era 400 contos. Primeiro auscultou amigos e banca. Ficou a saber que o apoiariam e assim se lançou na construção do primeiro e depois segundo navio costeiro. Passado o primeiro obstáculo, o interesse passou a ser a entrada na chamada grande pesca. Para ultrapassar as dificuldades de penetração neste tipo de actividade comprou dois navios (18 mil contos cada) já licenciados. Conseguido o crédito, transformou-os em congeladores e com eles foi para a Mauritânia.
Estávamos em 1967. Injectou capital na sociedade, abrindo portas à entrada de outros sócios, empenhou a camisa, como afirma, e assim começou a fazer as primeiras cargas e descargas de peixe congelado em Portugal. As primeiras reacções não foram as mais amistosas. “Fui muito perseguido pela equipa que orientava as pescas em Lisboa”, afirma, recordando as negações à descarga na Docapesca lisboeta e a montagem de um sistema alternativo entre camionetas e armazéns.

Antever e vencer

Repleto de contratempos e, ao mesmo tempo, de força para prosseguir caminho. Sabia que tinha a razão do seu lado, e a certeza, assegura, de que tecnicamente estava correcto. Ganhava dinheiro e, como diz, ia marchando. Pelo contrário, a quantidade de peixe fresco inutilizado atingia os 20%. Até que se tornou “evidente em Lisboa, que tinha razão”. Os mais directos opositores tornaram-se os seus mais fiéis apoiantes e, em 67, a imposição nos congelados estava conseguida.
Obtém uma ajuda de 12 mil contos do então Fundo de Renovação para a Indústria de Pesca. Um empréstimo referente à transformação dos navios, a uma taxa de juro de 3%. Estava resolvida mais uma etapa. E agora, ‘despachada’ a questão da Mauritânia, o pensamento de França Morte foi ‘só’ um: “vou andar mais para a frente”.
Comprou dois barcos que Portugal havia adquirido à Mauritânia (como exigência para o estabelecimento de quotas de pesca), inactivos. Motivo: a sofisticação da aparelhagem técnica. Sem receios ou medos de qualquer espécie, França Morte levou-os até Aveiro. Seis meses depois estavam prontos a iniciar a faina da pescada na África do Sul. Depois, também na Namíbia.
De navio em navio, o número ia crescendo e em 74 eram nove. Depois da revolução, França Morte ainda trabalha na congelação de peixe no Brasil, mas volta a Portugal para fazer crescer o império marítimo que havia iniciado. Durante a década de 80, constroem-se mais sete, de tal modo que hoje soma 16 navios. São embarcações que fazem parte da frota longínqua portuguesa, para a qual vai faltando quota de pesca.

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terça-feira, 25 de maio de 2010

A Ciência da Polis II


Em reflexão, nesta segunda parte do ensaio político, iniciado no mês anterior, está a governabilidade de um país ou a legitimidade democrática.

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo

De acordo com um sábio aforismo “o melhor sistema de governo é, na realidade, a democracia unânime: o governo dos melhores cientificamente escolhido por todos. Antes da perfeição, porém, uma sábia ordem (e não uma “lei de acaso”) impõe múltiplas experimentações” (semente 158 do livro do Centro Lusitano de Unificação Cultural, "Sementes do Jardim de Morya" e "Pérolas de Luz").
Na introdução deste trabalho está dito que o ordenamento – ou hierarquia – é fundamental para o êxito de qualquer objectivo que se tenha em vista e que a estrutura piramidal corresponde em absoluto a essa ideia de ordem, sem a qual viveríamos num autêntico caos.
A unidade de objectivos essenciais e comuns, que subjazem à ideia de existência de qualquer nação, é simbolizada pelo vértice da pirâmide, sendo a diversidade de caracteres, idiossincrasias e qualidades de todos os cidadãos simbolizada pela sua base. Ou seja, a unidade está em cima e a diversidade está em baixo. Não que a diversidade deva ser reprimida, atrofiada ou extinta pela unidade, mas, sim, que ela seja o modo de expressão daquela unidade, através do universo dos cidadãos que a compõem, tal como a luz branca una se manifesta através das sete cores do prisma. Trata-se, no fundo, da hoje tão falada “unidade na diversidade”.
Mas não é a isso que assistimos na nossa vida “política”, no seu sentido mais restrito, isto é, na gestão da república (res publica, “coisa do povo”) e ocupação dos cargos dirigentes da “polis”, ou país. Não existe nenhum ideal ou espírito de unidade que presida às concepções, decisões, planos de acção nas mais variadas áreas de actividade que vinculem os cidadãos e, simultaneamente, os façam sentir-se realizados na construção de um mundo melhor, de acordo com as suas mais íntimas e reais vocações, virtuosismos, esforços, temperamentos, etc. Mais: esses mesmos dirigentes não sabem sequer o que os condiciona ou determina, nem o que implica receber, da parte dos cidadãos, a confiança e a responsabilidade de os representar dignamente.
Dirão os demagogos, por certo, que em democracia vence quem tem mais votos. Mas será essa a essência da democracia? Se sim, bastar-lhes-á (aos demagogos, ditadores, sofistas) lançar – ou manter – o povo nos antros da ignorância (que, para Platão – no Timeu –, é, a par da insânia ou demência, a outra doença da alma), do egoísmo, da maledicência, do oportunismo, da exclusão, do adestramento, etc., etc., etc., e quadrienalmente instigá-lo a escolher o seu salvador/governante, que lhe dará a felicidade na terra, que a do céu lha garantirá o salvador/sacerdote.
Por outras palavras, no nível superior da estrutura, onde devia estar o vértice da pirâmide (que representa a unidade na acção consciente e responsável), está a base, ou a diversidade das opiniões (maioritariamente inconsistentes, contraditórias e pueris), dos meros interesses pessoais, das ambições egoístas e conflituantes, dos desejos inconfessados, das paixões exacerbadas, em suma, das ilusões e crendices só comparavéis às difundidas pelas fraudes teológicas; e no nível inferior da estrutura, onde deveria estar a base, está a vontade de bem (a unidade espiritual dinâmica), reprimida pela insuportável pressão dessa promiscuidade de egoísmos. Enquanto persistir este quadro, a vontade de bem ver-se-á impedida de surgir à luz do dia e de servir o Bem Comum, a Justiça, a Verdade e a Beleza.
Temos portanto a pirâmide invertida, símbolo do caos e da permanente instabilidade, pelo que facilmente concluiremos (dando assim a machadada final nas pretensões dos demagogos, medíocres e ignorantes) que jamais será possível erigir-se uma construção num terreno acidentado (que é esta espécie de democracia) sobre uma estrutura sem a mínima possibilidade de se manter firmemente erguida.


Equívocos democráticos

A vida democrática por nós inconscientemente aceite enferma de equívocos insanáveis, que urge eliminar para bem da verdadeira Democracia, que é o poder do Povo, pelo Povo, para o Povo (isto é, dos cidadãos, pelos cidadãos e para os cidadãos, sem a exclusão de ninguém).
1. O primeiro equívoco é sobre o poder. Para que servirá o poder? Será para condicionar, sujeitar, excluir ou aviltar, a maioria, alguns, ou até um único cidadão? O estado geral do mundo mostra-nos ao que esse equívoco nos levou. Definitivamente, não! O poder existe para servir e a única legitimidade que deve ser reconhecida aos que o exercem é a de contribuir para a realização plena do conjunto dos cidadãos que formam a nação. Caso contrário, tais representantes serão tidos pela história verdadeira (não pela truncada e deturpada) como usurpadores, pois, na verdade, como se lê em qualquer dicionário, “apoderam-se astuciosa” (nas democracias) “ou violentamente” (nas ditaduras) “de uma coisa de que alguém legitimamente usufruiu ou que lhe pertence”. E que coisa é essa de que eles se apoderam? É “só” a dignidade, universalmente reconhecida, de todo e qualquer ser humano, dignidade inerente ao direito de participar na obra de construção de um mundo melhor, mais justo, mais belo, mais verdadeiro (numa perspectiva política), ou na Mente Universal, ou Pensamento Divino (numa perspectiva filosófico-religiosa), enquanto agente criador das mais sublimes e indeléveis expressões da Arte, da Ciência, da Filosofia e da Cultura. Para compreender melhor este conceito – “dignidade” – socorramo-nos de Kant: "No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade" (In "Fundamentação da Metafísica dos Costumes").
Por analogia, o serviço que os pais prestam aos filhos, ao longo do seu processo de educação, socialização e autonomia, tem como fonte o poder paternal consagrado e reconhecido por todos. Mas quando tal dever (mais do que direito) é violenta e abusivamente exercido, as vítimas indefesas são retiradas da sua alçada por um poder maior que tem em vista o seu verdadeiro bem. Ora, será isso que sucede nas relações do poder com os cidadãos, os reais destinatários da acção legislativa, executiva, judicial?
2. O segundo equívoco com que a demagogia [“o governo ou actuação política pautada pelo interesse imediato de agradar às massas populares, com o fim de alcançar o poder ou de o manter; situação política em que o poder é abandonado às multidões”, conforme consta dos dicionários] continua a iludir os cidadãos e é deveras espantoso.
Senão vejamos: como qualificaríamos um conjunto de associados que escolhesse um grupo de pessoas desconhecidas para dirigir a sua instituição cultural, sem saber se, no seio desse grupo, havia alguém desonesto? Mais: esse mesmo grupo tinha como foco central da sua campanha o auto-elogio e considerava-se ser o único capaz de dirigir a associação, apesar de nunca ter dado provas da sua competência ético-profissional em nenhum momento anterior, fazendo assim tábua rasa das virtudes da humildade, da discrição e da verdadeira sabedoria, que nunca é vaidosa, presunçosa, nem vexatória. No mínimo consideraríamos tais associados imprudentes e insensatos, para não dizer insanos ou dementes. E o mesmo diríamos não só de um cidadão que, numa acção judicial contra terceiros, contratasse um advogado totalmente estranho, ou sem sequer saber se este tinha sido escolhido pela parte contrária, como também de quem, de modo geral, se entregasse cegamente nas mãos de quem quer que fosse sem as mínimas garantias de segurança e idoneidade.
Ora, não é precisamente isso que sucede na relação entre eleitores e eleitos? Os candidatos aos cargos políticos são absolutamente desconhecidos dos eleitores para justificar a confiança que neles é cegamente depositada. Fará isto algum sentido? E que provas de competência e idoneidade possuem para merecer a nossa escolha livre e responsável, ou, por outras palavras, a nossa escolha verdadeiramente democrática?
Mas não é só isso que acontece. Os partidos políticos “legalmente” constituídos, em vez de preencher os seus núcleos e quadros especializados nas mais diversas áreas em que têm de intervir – quando, um dia, para tal forem “convocados” pelos cidadãos – com cidadãos solidamente dotados de uma ética irrepreensível, uma competência profissional inequívoca e com sólidas raízes no meio a que pertencem, apressam-se a aceitar todos os que decidem inscrever-se como militantes, sem qualquer preocupação em saber se vêm ou não imbuídos de espírito de servir o país e a comunidade. Pois se nem os próprios dirigentes partidários conhecem verdadeiramente os seus correligionários, como é que os eleitores os poderão conhecer? E, alargando o raciocínio, como é que poderão esses mesmos líderes conhecer a real natureza dos seus concidadãos eleitores e saber das suas reais aspirações, expectativas, vocações e potencialidades, para que, através da sua acção governativa lúcida e verdadeiramente educativa, possam estimular a sua exteriorização?
3. O terceiro equívoco – que nos escravizará enquanto persistir este género de democracia – pode ser resumido no velho sofisma com que o hábito, os séculos, a hipocrisia teológica e o correspondente cinismo político petrificaram as consciências dos governados: “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Basta-nos um único exemplo: a legislação imposta pelos partidos aos cidadãos sobre matéria tributária, fiscal e contabilística. De facto, está absolutamente vedada aos contribuintes a possibilidade de infringir a legislação aprovada pelos legisladores (isto é, por terceiros), sob pena de pesadas e graves sanções, por vezes desproporcionadas e precursoras de verdadeiras calamidades sociais. Ora, como se comportam os próprios mentores e autores dessa legislação quando se trata das contas e dos financiamentos partidários, isto é, quando actuam em causa própria? Vejam-se, a este propósito, os gastos com as campanhas eleitorais, o financiamento dos partidos políticos, etc. E quais são as consequências reais para os que infringem as leis que eles próprios aprovam?
Mas isto não nos faz recordar nada? Voltemos à velha dupla, à “eterna aliança”, poder clerical/poder temporal. A apologia da pobreza – de corpo e espírito (ou mente) –, como “via verde” segura para o reino do céu feita pela igreja, destina-se somente aos “fiéis”, mas não aos seus proclamadores, cuja ostentação e prodigalidade excessivas só são dignas de um “deus” feito à sua imagem e semelhança! A desmoralização, o desânimo e a submissão dos cidadãos por parte da conspiração teológico/política são os reais objectivos da sua acção insidiosa e nefasta, através da sua redução a acéfalos consumidores de bens perecíveis: da moeda, que lhes garante o paraíso na terra, e das missas por alma (mesmo antes da morte), que lhes asseguram o paraíso no céu. E o lema com que os atemorizam e iludem está bem sintetizado nas expressões: cada um por si; salve-se quem puder; olho por olho, dente por dente; homem/mulher de sucesso e quejandos.
Se legislar em causa própria é outro equívoco insanável – e por aqui ficaremos –, é apenas porque a maturidade e a sabedoria encontram-se apartadas dos seus indignos ideólogos e executores.
E assim, todo o governante ou agente político age de má-fé, exorbita de forma vergonhosamente inconcebível as suas funções, avilta e destrói a sua própria autoridade moral, sempre que, em nome do “Bem Comum” (e não é para esse fim que se candidata?), atribui a si mesmo e seus pares privilégios, sinecuras e prebendas (“empregos rendosos e que não obrigam a trabalho”, “rendas eclesiásticas”) que jamais ousaria submeter aos cidadãos em campanha eleitoral ou por referendo.
Aliás, a acumulação de funções que prolifera nos meios frequentados por dirigentes partidários, responsáveis políticos, gestores públicos e respectivo séquito, em especial nos nossos dias, quando cresce vertiginosamente o desemprego até no grupo dos recém-licenciados, são a melhor prova da insensibilidade, desrespeito e abuso de poder da (in)consciência dos seus detentores. Será assim tão difícil de perceber que uma remuneração mensal (das várias que aufere) de apenas um desses “gestores” tiraria da dependência (angustiante e sombria) dos progenitores pelo menos um ou até dois desses jovens licenciados?.

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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Neurocomunicação

Sexta-Feira é Dia Mundial da Comunicação. Para o assinalar dedicamo-nos a um livro que estuda a relação entre as estruturas nervosas e o comportamento. Nele a autora explica como o conhecimento resulta de um processo selectivo daquilo que se reconhece do meio ambiente.

Texto Dina Cristo

A Sociedade de Informação fez aumentar a produção e velocidade de transmissão de dados e implodir o tempo. Enquanto o saber enciclopédico era linear, programado, limpo e preciso, hoje, perante a multiplicação de dados acessíveis através da internet, as novidades estão em inter-relação constante, relativizam-se e evoluem sem ser de forma pré-determinada. A sua apreensão tende a ser mais global mas a favorecer uma comunicação fraccionada, ou seja, fractal, em que as partes têm a mesma estrutura que o todo mas em escalas diferentes – é o caso das novas redes.
Mas os dados, por si só, não geram conhecimento. Este só advém do potencial humano de análise e compreensão, desenvolvido na idade adulta, que resulta da complementaridade proporcionada pelos dois hemisférios. O esquerdo é mais racional, analítico, lógico, explícito, ligado à linguagem verbal, ao conhecimento, ao passado, à planificação da acção. Por sua vez, o hemisfério direito é mais irracional (além da lógica racional, intuicional), sintético (apreende a globalidade e complexidade), implícito (o não dito), relacionado com a linguagem não verbal, a criatividade ou o futuro. É o corpo caloso, composto por cerca de 200 milhões de fibras, que assegura a ligação entre os dois hemisférios.
O cérebro é constituído por milhões de neurónios. Estas células nervosas têm prolongamentos, nomeadamente as dendrites, que captam os estímulos, e os axonas, que dirigem, decidem transmitir ou não, os sinais eléctricos, designadamente para outros neurónios. Cada uma delas tem cerca de dez mil possibilidades de contactos, as sinapses, fluxos electroquímicos, impulsos nervosos em movimento, com um grau de liberdade equivalente a mais de dez milhões de quilómetros.
Existem três grandes áreas cerebrais. O cérebro réptil, primitivo, controla as necessidades fundamentais e é a sede dos comportamentos rotineiros, inatos, automáticos, gestos impulsivos ou estereotipados; é rígido, não tem memória nem capacidade de adaptação. O cérebro límbico, génese das emoções, onde estão os centros de prazer que provocam desejo, facilitam o acesso de informações positivas e inibem as desagradáveis, tem faculdade de memória e aprendizagem; a conduta integra as experiências afectivas anteriores e torna-se mais subtil. O cérebro cortical, sede dos comportamentos inteligentes, mais autónomos, livres (dos instintos e afectos), sede do pensamento (abstracto) adapta-se às situações e possibilita uma resposta diferente, original.
Informação selectiva

As neurociências estudam o funcionamento do sistema nervoso, desde os estímulos às reacções comportamentais. A neurocomunicação estuda a relação entre as estruturas nervosas e o comportamento, considerado discursivo, decisivo e comunicativo. As reacções, internas ou externas, espontâneas ou reflexivas, resultam de um filtro selectivo, que se manifesta na percepção e interpretação, decorrentes do estímulo inicial.
Os estímulos podem ser caracterizados, por exemplo, pela intensidade ou sensação que provocam; no caso dos neurónios é a sua excitação que liberta neurotransmissores. De uma forma geral, podem ser quantitativos ou qualitativos, temporais (auditivos) ou espaciais (visuais). A sua percepção, desenvolvida até à idade adulta, através dos sentidos, permite ao sujeito a tomada de consciência do meio ambiente.
A percepção dos estímulos depende de filtros, que reconstroem o que é recebido pelos sentidos. Grande parte deles não é detectada devido a selecções mentais, afectivas, físicas, sociais, culturais, por exemplo, que delimitam o universo sensorial acessível. A fadiga, o desinteresse, a falta de atenção e/ou de motivação são também fechaduras perceptivas. Pelo contrário, a curiosidade facilita a percepção aguda dos fenómenos circundantes.
Os receptores sensoriais só captam, pois, uma parte da informação do ambiente: aquela que é compatível com a natureza do filtro: «(...) nós percebemos o que nós procuramos perceber (...)»1, defende Lucienne Cornu. Trata-se, portanto, de um conhecimento que reflecte o estado emocional: «A percepção é muito mais uma escolha, mais ou menos consciente, do que um facto objectivo»2. Daí o preconceito, ou seja, a representação do mundo, antecipada, pessoal e singular, sob influência, designadamente, das esperanças e intenções.
O segundo processo de tratamento informativo, a interpretação, é simbólico e refere-se à atribuição de significado, de acordo com as próprias referências e memória de experiências passadas: «Nós temos tendência de “ver” com a nossa memória antes mesmo que com nossos olhos»3, afirma a autora.
Os sistemas vivos são constituídos por massa, energia e informação. Esta divide-se em dois tipos: a circulante, variável, captada, como vimos, por estruturas de recepção, e a estrutural, constante, que dá forma ao organismo e mantém a sua estrutura. Contudo, «Todo o ser necessita de intimidade, mas também de comunicação»4, lembra a especialista. Para sobreviver, o organismo precisa de satisfazer uma necessidade vital: comunicar, estabelecer trocas entre o meio interno e externo, num sistema aberto, com laços dinâmicos, em intercâmbio. Assim, temos dois aspectos: por um lado o digital, o conteúdo concreto, e por outro o analógico, relacional, a comunicação não verbal e a paracomunicação.

1 CORNU, Lucienne – Neurocomunicação – para compreender os mecanismos da comunicação e aumentar as competências, Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2004, p.63; 2 Idem, ibidem; 3 Idem, ibidem; 4 Idem, p.25.

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

"Fátima" no JN

Em plena visita papal, editamos um texto, elaborado em 2002, sobre os artigos publicados no “Jornal de Notícias”, no dia 13 de Maio, entre 1964 e 1984, relativos às celebrações da aparição da Virgem Maria aos três pastorinhos.


Texto Ana Rasteiro Brites fotografia Dina Cristo


A 13 de Maio de 1917 estavam os três pastorinhos, Francisco, Jacinta e Lúcia, a guardar o seu rebanho na Cova da Iria, em Fátima, quando de repente um clarão brilhou no céu.
Em frente deles estava uma Senhora muito nova e “extraordinariamente bela, mais brilhante do que o sol” sobre uma pequena azinheira. A Senhora pediu-lhes que se encontrassem naquele lugar, no dia 13 de cada mês, ao meio-dia.
Os três pastorinhos combinaram não dizer nada a ninguém sobre o que tinham visto, no entanto Jacinta não se conteve e dissera à sua mãe que tinha visto Nossa Senhora. Então os três pastorinhos tiveram muitos problemas, pois ninguém acreditava neles.
No dia 13 de Junho apareceu a Virgem novamente sobre a azinheira, onde disse a Francisco e Jacinta que iriam brevemente para o céu, ao contrário de Lúcia que iria continuar na Terra.
No mesmo dia do mês seguinte já estavam mais de 2000 pessoas aquando da aparição de Nossa Senhora e disse-lhes que “No mês de Outubro, farei um grande milagre, para que todos acreditem”.
Tal como tinha sido prometido, no dia 13 de Outubro de 1917 a Virgem fez um milagre, para que todos acreditassem, com “A Dança do Sol”.

Década de 60

Na edição do “Jornal de Notícias” do dia 13 de Maio de 1964, Quarta-Feira, é dada uma ideia do que se passa em Fátima durante este dia: “Fátima é desde ontem à tarde e continuará a ser até ao princípio da tarde de hoje o altar do mundo onde ajoelha e reza gente de todas as latitudes, de todas as raças, de todas as condições sociais, de todas as idades”.
Nessa altura Fátima é o palco de “uma expressão conjugada de fé que não conhece os limites do sacrifício”.
Em 1965 “Fátima é inegavelmente um fenómeno”, mais uma vez milhares de peregrinos chegam nesta altura ao chamado “Altar do Mundo”.
Nesse ano, a peregrinação termina de uma forma especial, com a “solene entrega da Rosa de Ouro concedida pelo Papa Paulo VI e entregue por D. Fernando Cento “ao santuário”.
Segundo o Papa Paulo VI o “que todos os anos se vê em Fátima é a prova segura de que “enquanto houver portugueses a Virgem será sempre o seu amor”.
Todos os anos Fátima é palco de penitências, muitas delas são pagas de joelhos, por mulheres e homens sozinhos ou com filhos ao colo, por jovens e até mesmo por idosos.
Em 1966 “Vinte e um prelados portugueses e fiéis de todo o mundo reunidos em Fátima na grande peregrinação de Maio”, na qual “tomaram parte representações de quase todos os países católicos do mundo”.
Tal como acontece todos os anos, e este não é excepção, “a procissão das velas constitui uma impressionante manifestação de fé”, onde se encontram milhares de pessoas a observar o andor de Nossa Senhora iluminado.
Este acontecimento é retratado pelo “Jornal de Notícias” como uma “emocionante expressão de fé, espectáculo de extraordinário significado e beleza que atingiu (…) um raro esplendor”.
Em 1967 “Portugal recebe o Papa!”.
Foi um dia muito importante em Fátima, o 13 de Maio de 1967, uma vez que o Papa Paulo VI veio a Fátima participar nas celebrações do 13 de Maio, nomeadamente na procissão do “Adeus”.
Um outro factor, não menos importante, que marcou o 13 de Maio deste ano, foi o facto de que Lúcia, “única vidente ainda viva”, assistiu na tribuna papal às cerimónias em honra de Nossa Senhora.
Em 1968 é a vez de “Fátima no fecho do ano jubilar”.
Em Fátima, no Altar do mundo, “onde se multiplicam de ano para ano testemunhos da grande força da fé católica, vivem-se as horas do encerramento do cinquentenário das aparições de Nossa Senhora”.
É também muito retratado pelo jornal as considerações feitas sobre a visita do Papa Paulo VI a Fátima no ano anterior, tal como a inauguração da sua estátua no presente ano, nomeando-o de “Papa peregrino”.
No último ano da década de 60 Fátima é, novamente, como se repete há 52 anos, o Altar do Mundo, onde decorre “a mais grandiosa e expressiva manifestação de fé”.
“A peregrinação deste ano ao santuário de Fátima será efectivamente das mais comovedoras de sempre”.
Segundo o enviado especial do JN a peregrinação de 1969 foi deveras marcante, pois jamais se verificaram “tão numerosos actos de dura penitência”, “meia centena de mulheres de todas as condições sociais – percorrendo de joelhos, em cumprimento de promessas, esse longo caminho que vai da Cruz Alta à capelinha das Aparições”.
No 53º aniversário das aparições são muito menos os fiéis que acorrem ao santuário de Fátima no 13 de Maio, devido ao tempo incerto com aguaceiros. No entanto, todas as celebrações foram realizadas ao ar livre como estava previsto.

Década de 70

Em 1970 a peregrinação nacional teve como intenção “pedir a beatificação dos videntes Jacinta e Francisco Marto, no cinquentenário da sua morte”.
“Portugal e o mundo peregrinos em Fátima”. Em 1971 encontram-se novamente em Fátima peregrinos de todo o mundo “De joelhos, em volta da Capela das Aparições”, “promessas feitas em horas de angústia – cumprem-se num arrastar dramático, doloroso. Padece agora o corpo – porque a alma se viu aliviada”.
“Fátima reza pela paz no mundo” e volta a ser palco, em 1972, de uma grande afluência de peregrinos: “De todo o mundo peregrinos convergem para Fátima”, uns a pé, outros de carro, “vai-se de muitas maneiras – vai-se por devoção e fé”.
Em 1975 há “Crentes de todo o mundo em Fátima” e a 13 de Maio atinge-se, segundo o enviado especial do “Jornal de Notícias”, “A maior peregrinação dos últimos anos” cuja explicação assenta no facto de que “o 12-13 do corrente mês é um fim-de-semana” e também porque é o Dia Mundial da Oração pelas Vocações.
Em 1974 há “Peregrinos de cravo ao peito” e Fátima é palco de inúmeras manifestações de fé, “num Portugal renovado pela liberdade”.
“Gente deste Portugal rejuvenescido há 18 dias apenas, rezará pelo futuro”. “Os peregrinos de Fátima associaram a esperança comum à fé que os une neste ano da graça em que Portugal teve a liberdade como bênção”.
O tema da peregrinação de 1975 é a reconciliação: “Os portugueses chegam para rezar pela «reconciliação de uma sociedade em conflito»”. Segundo o enviado especial do JN encontram-se muitos ex-combatentes por entre os penitentes que “caminham ou se arrastam” para o santuário de Fátima.
Em 1976, Fátima continua a ser o “altar, ponto de encontro da gente com fé”.
O Cardeal Sebastião Bagio, perfeito da Sagrada Congregação dos Bispos, veio “de Roma à Cova da Iria para presidir à peregrinação destinada a orar e a reflectir sob o tema «Vamos construir a civilização do amor»”.
No dia 13 de Maio de 1977 comemora-se o 60º aniversário da aparição de Nossa Senhora aos três pastorinhos.
Fátima é novamente o altar de inúmeras manifestações de fé, “fé esta que todos os anos faz convergir milhares de peregrinos à Cova da Iria”. O título de primeira página é “Peregrinos do mundo inteiro em oração pela unidade da Igreja”.
Segundo José Coimbra, o enviado do JN em 1978, “Milhares de peregrinos de todo o mundo encontram-se desde ontem no santuário da Cova da Iria para prestar homenagem à Senhora de Fátima, no 61º aniversário das aparições”. O título era “Orações solicitaram sociedade mais justa”.
“Uma das maiores peregrinações de sempre – meio milhão de fiéis rezam em Fátima” deu-se em 1979, no Ano Internacional da Criança: “foi às crianças que a Virgem falou”.
Segundo o enviado especial do jornal esta foi “uma das maiores peregrinações de sempre senão a maior – número só atingido em 1967, quando aqui se deslocou o Papa Paulo VI”.
Novamente Fátima se transformou no altar do Mundo onde “se respira um ambiente de estranho misticismo, que se espelha no semblante de cada um dos peregrinos, cujos olhos irradiam esperança”.

Década de 80

Em 1980, “Multidão orou toda a noite à luz das velas na Cova da Iria”.
“Fátima viveu mais um dia 13 de Maio” do ano seguinte com um vasto número de peregrinos que como sempre vêm de vários pontos do país” e cujo tema da peregrinação era “Nós os cristãos não podemos viver sem o domingo”.
No ano de 1980 Fátima contou com a presença do Cardeal espanhol D. Marcelo Gonzalez Marti que, segundo o enviado especial do “Jornal de Notícias”, fez um apelo “para que humildemente a venerem, já que Ela tem uma imagem universal e por isso mesmo não é de Portugal ou de Espanha MAS sim de todo o Mundo” – Nossa Senhora.
Em 1981, “Milhares de peregrinos não olham aos sacrifícios da sua devoção”. O tema da peregrinação deste ano é “Celebrando o domingo, edificamos a Igreja com Maria”.
O “Jornal de Notícias” testemunhou novamente mais um ano em Fátima cheio de sacrifícios – são inúmeros os casos de devoção. As pessoas chegam a Fátima de diversas formas, “desde as pernas ao autocarro, passando pela bicicleta, de modo que à chegada a Fátima eram frequentes os abraços e até as lágrimas, quando vizinhos e familiares se voltavam a ver”.
Em 1983, “sob novo «milagre do sol», a presença do Papa foi constante”.
Segundo o “Jornal de Notícias” “Em Fátima assistiu-se, ontem à tarde, a um novo «milagre do sol», pelo menos assim o afirmavam muitos milhares de peregrinos”, pois precisamente às 19h, aquando do início oficial da peregrinação “o sol rompeu as nuvens negras que todo o dia ensombraram a região, vindo iluminar a Capelinha das Aparições”. Também foi muito evocada a presença do Papa João Paulo II, há precisamente um ano.
“Fátima constitui apelo à renovação da Igreja, para que ela possa oferecer uma imagem correcta de si mesma”, foram as palavras do Arcebispo de Évora em 1984.
Como já é hábito, em todos os 13 de Maio, “Ontem (…) todos os caminhos de Portugal iam dar a Fátima” e “o facto de se estar num fim-de-semana, e de fazer bom tempo, deverá ter contribuído para que o santuário se apresentasse ontem à noite repleto”.

Comparação

No decorrer destes 20 anos na edição de 13 de Maio do “Jornal de Notícias” o espaço dado ao fenómeno de Fátima não é uniforme nem homogéneo, pois não há uma regra, nem sempre existem as mesmas páginas ou número de palavras.
A importância dada às aparições de Fátima, a nível espacial e formal, varia consoante a menor ou maior relevância que o acontecimento tenha, tanto para o jornal como para a sociedade.
No entanto, em todos estes jornais houve sempre um espaço reservado na primeira página para este acontecimento, o que demonstra de alguma forma a importância que tem para a população, nomeadamente para os leitores do jornal.
No que respeita ao discurso do “Jornal de Noticias”, antes e após o 25 de Abril de 1974, sobre o 13 de Maio, existem algumas diferenças.
Logo na primeira edição após a data histórica verificam-se algumas alterações no discurso. Até ao 25 de Abril a imprensa não publicou nada que fosse contra o regime político vigente – era tudo a favor nada contra o Estado.
No entanto, no JN de 13 de Maio de 1974, 18 dias após a revolução afirma-se que com a mudança do regime não mais “haverá soldados bravos rapazes de Portugal renovado, envergando tantos fatos de guerra”. Nesta mesma edição do jornal da cidade invicta também se denota uma crítica à Igreja: “E repórter encontra em Fátima toda uma estrutura material-comercial que tende a modificar um lugar espiritual”. Na edição de 13 de Maio de 1975, o tema é a “reconciliação numa sociedade em conflito”.
No “Jornal de Notícias” de 13 de Maio de 1976 há uma crítica a Fátima ou, mais precisamente, a tudo o que a envolve: “Por um lado foi o altar, ponto de encontro de gente com fé; por outro mais não passou do que pólo de atracção de gentes para as quais a fé (dos outros) é filão que se explora até à exaustão”.
“Orações solicitaram sociedade mais justa” é o que se pode verificar no JN de 13 de Maio de 1978. Na edição de 1974 temos outra frase crítica: “devemos amar a época que vivemos mas é necessário transformá-la”.
Antecedentes
A implantação da República em 1910 toma inúmeras medidas com vista à abolição da Igreja Católica. Põe fim à instrução religiosa nas escolas, fecha conventos, mosteiros, passando os seus bens para o Estado, encerra a faculdade de Teologia em Coimbra, suprime os 26 feriados religiosos, as prestações de juramento nos tribunais e expulsa os jesuítas.
Deste modo o Estado desperta o anticlericalismo, pois quer castigar a Igreja Católica pelo seu comprometimento com a monarquia. Consequentemente o clero virou-se contra a República. Esta revolta é apoiada por Salazar como se verifica no seu discurso pronunciado a 23 de Novembro após a sua ascensão a membro do Conselho: «Pode afirmar-se, (…) que a república portuguesa essência anticatólica e que a sua neutralidade representava uma mentira, o que era grave para a república e para a Igreja num país de população e de tradição católicas”.
Numa situação de anticlericalismo por parte da República e de uma situação de anti-republicanismo por parte da Igreja, entre 1910 e 1926, a aparição de Nossa Senhora aos três pastorinhos em 1917 tem duas interpretações diferentes.
Em 1922 é lançada “A Voz de Fátima”.
Em 1924 inicia-se a construção do Santuário de Fátima que recebe milhares de peregrinos, tanto portugueses como estrangeiros, que para ali se deslocam, permanentemente.
Em 1929, a 13 de Maio, o Presidente da República e o chefe do Governo assistem à cerimónia de celebração do culto.
Em 1931 está presente um milhão de pessoas para a celebração do 14º aniversário da aparição.
Portugal é consagrado ao Imaculado coração de Maria a 13 de Maio de 1938.
É atribuído em 1965 por Paulo VI a Rosa de Ouro ao santuário.
Segundo os opositores do regime “Salazar anexou a Virgem” e Fátima é considerada, juntamente com o fado e o futebol, um dos três F maléficos do Estado Novo.
Salazar utilizou a Igreja para chegar ao poder, pois as suas ideias de base eram conservar o catolicismo como apoio, dando-lhe algumas vantagens em troca da cristianização da população, uma vez que um povo que seja crente é mais fácil de dominar.

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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Rádio clássica


Quando passam amanhã 65 anos sobre o aparecimento de um programa específico na então Emissora Nacional, publicamos um artigo escrito, no início deste ano, pela mezzo-soprano portuguesa, Raquel Luís, actualmente no National Opera Studio em Londres. Trata-se de uma recuperação e actualização de uma investigação, realizada há nove anos, sobre as origens e evolução do lado B da história da rádio pública.


Texto Raquel Luís


Em 2001, com o objectivo de estudar a evolução da Antena 2 – analisar como as mudanças de direcção se reflectiam ao nível dos objectivos, da programação e dos níveis de audiência – rumei a Lisboa para conhecer a Drª Alexandra Fraga, responsável pelo Centro de Documentação da RDP. Devo frisar que sem a sua preciosa ajuda este trabalho nunca poderia ter sido concluído, uma vez que ela foi a única porta (das muitas a que bati na RDP) que se abriu. Após dois dias de intensa “dissecação” de uma pilha de ordens de serviço (desde 1944 até 2001) e da recolha de conhecimentos inéditos arquivados na memória de alguns funcionários, chegava a altura de tentar encontrar uma história no meio de tantos fragmentos.
Para quem está mortinho por saber em que ano afinal foi fundada a Antena 2, lamento desapontar, posso apenas esclarecê-lo mas não dar-lhe uma resposta oficial. Existem duas datas defendidas, 1945 e 1948. Como não houve uma formalidade quanto ao processo de criação deste canal, quanto a mim ambas as datas poderão ser aceites, dependendo de quão fidedigna se espera que esta origem seja.
Passo a explicar: a 6 de Maio de 1945 surgem pela primeira vez dois programas a co-habitar a mesma emissora, apesar de não haver uma distinção entre eles a nível da nomenclatura. Este segundo programa ocupava somente duas horas diárias e, ao contrário da actual Antena 2, transmita fados, missas e músicas de salão. A música clássica era igualmente incluída mas não era exclusiva da sua programação. A 9 de Maio de 1948 estes dois programas não só funcionam agora em emissoras separadas por meio de desdobramentos, como saem do anonimato para adquirirem uma nomenclatura: Programa A e Programa B. Quanto ao conteúdo, a música clássica mantém-se comum às duas emissoras, enquanto que o Programa B transmite também folclores musicais, músicas de filmes e palestras nas suas quatro horas de emissão diária.
Apesar da exaustiva pesquisa nas ordens de serviço, nas décadas de 50 e 60 a Antena 2 passa completamente em branco, talvez devido à ditadura em que o país se encontrava mergulhado.
Anos 70
Finalmente saídos do regime ditatorial, em 1975, com a nacionalização das emissoras e com a criação da Empresa Pública de Radiodifusão, o Programa B passa a ser denominado de Programa 2 e em 1976 Nuno Barreiro é o primeiro responsável vinculado à estação. A 7 de Fevereiro de 1979, com o objectivo de reconquistar a audiência inequivocamente diminuída em 1978, é feita uma reestruturação total da RDP, o que alterou a estrutura da Antena 2 (até aqui praticamente inexistente). Devido à inadequada política de programas, a RDP não tinha junto do público uma imagem nítida. De modo a solucionar este problema foram elaborados novos mapas de programação e reestruturada a empresa, criando-se uma Comissão Administrativa.
Com a finalidade de obter uma maior eficiência e rentabilidade nos seus serviços, a RDP determinou o campo de acção dos seus programas. Assim, os programas não comerciais deveriam incluir as componentes cultural e formativa, além da recreativa. Estabeleceu-se então que o Programa 2 era de predominância cultural e que o seu público-alvo pertencia a estratos socioprofissionais bem definidos e situados predominantemente nos grandes centros urbanos, tendo estes especiais preocupações com a qualidade. Nesta reestruturação foi excluída a produção de programas informativos do âmbito do Programa 2.
Eu questiono-me se esta não deveria ser então a data “oficial” da origem da Antena 2, uma vez que apenas agora se definem os objectivos, o âmbito e o público-alvo desta estação e finalmente o Programa 2 se diferencia dos demais no que até hoje se mantém a sua identidade: o intuito de estimular o interesse e o gosto pela cultura no nosso país.
Algures entre 1983 e 1990 adopta-se a denominação de Antena 2, mas uma vez mais, a exactidão desta mudança é uma questão que não reúne consenso. De qualquer modo, em Outubro de 1986, o Programa 2 (ou Antena 2!) funcionava em F.M., 16 horas por dia. Essencialmente cultural, a sua programação visava abranger diversas expressões de cultura, predominando a música erudita com inclusão de outros géneros musicais, como o Jazz e a música popular. Dentro das temáticas não musicais incluem-se algumas novidades: Literatura, História e Artes Plásticas. Eram feitas dramatizações de textos, transmitidos ciclos sobre temas, figuras célebres, bem como efemérides e entrevistas com personalidades da vida cultural portuguesa.
Anos 90
Esta é uma década de grande agitação na Antena 2. As constantes mudanças de direcção acarretam consigo diferentes objectivos que se traduzem em claras modificações nas grelhas de programação, sempre com a esperança de aumentar os níveis de audiência. Em 1991, o Maestro José Atalaya substitui o anterior director, José Manuel Nunes. É com ele que em 1992 se inicia a publicação e distribuição gratuita dos boletins contendo além das grelhas de programação, informação sobre os programas e a frequência da rede de emissores.
A 29 de Outubro de 1992 é nomeado para director da RDP 2 o Engº João Paes. Com ele começa uma nova era que em 1993 põe termo à Antena 2 e dá início à Rádio Cultura. Pretende-se fazer do segundo canal da RDP uma rádio de consulta, à imagem de uma enciclopédia, onde cada um pode encontrar o que lhe interessa. A nova grelha de programação engloba programas dedicados à história da música, bem como a outras formas artísticas e intelectuais, tais como a literatura (empenhando-se na divulgação do património literário português), a filosofia, a história, a ciência, as artes plásticas, o cinema, o teatro, estando cada um deles acomodado em programas específicos. Estabelecendo uma analogia sobre aquilo que era e o que se pretendia que fosse o segundo programa, João Paes diz que a Antena 2 consistia em “pouco mais que uma massa uniforme de música, alinhada sem critério que se veja, e transmitida com relativa negligência, prestando-se à função de tapete auditivo para a lide doméstica”1.
Apesar de um dos objectivos da nova Rádio Cultura ser o de contribuir para a descentralização e democratização da cultura entre os portugueses, o que é facto é que as críticas depressa se fizeram sentir, acusando a estação de se ter tornado fechada e elitista, podendo a quebra de audiências ser interpretada como o resultado disso mesmo.
É assim que em Março de 1994, José Manuel Nunes retoma as funções que lhe pertenceram entre 1984-1991, de director da Antena 2. Adoptando a filosofia de acção “mais músicas, menos palavras e melhor som”2, pretende-se iniciar um processo de recuperação de imagem e de objectivos, de modo a implantar um canal mais aberto e eclético, para que a cultura esteja acessível a todos e se possam conquistar novos públicos.
A 14 de Dezembro de 1996, após parecer favorável da Alta Autoridade para a Comunicação Social, João Pereira Bastos é nomeado o novo director da Antena 2, função que ocupa até meados de 2005. Apesar de na altura em que redigi o meu trabalho ter tentado por diversas vezes entrevistá-lo, de forma a compreender o seu plano de acção para a estação, este pedido foi sempre ignorado. Talvez os próprios dirigentes da Antena 2 não reconheçam nenhum benefício em tentar traçar um histórico há tanto tempo perdido. Se não sabemos de onde vimos, como poderemos saber para onde vamos? Talvez conhecer um pouco mais sobre o passado da Antena 2 pudesse trazer uma perspectiva diferente sobre o presente e uma estratégia mais eficaz para o futuro.
Século XXI
Segundo consegui apurar, em Outubro de 2003 a direcção de João Pereira Basto, na tentativa de expandir os seus ouvintes e conquistar o público mais jovem, sofreu fortes críticas devido à diminuição drástica da qualidade em detrimento do “facilitismo cultural da programação”. Permitam-me recomendar o seguinte artigo de opinião escrito por Carlos Araújo Alves, em Maio 2004: Antena 2 – um fiasco estratégico.
Em Julho de 2005 Rui Pêgo assume a direcção da Antena 1, 2 e 3 e João Almeida é nomeado director-adjunto da Antena 2. Uma vez mais a nova direcção da Antena 2, sempre com as melhores intenções, efectua as suas mudanças. Com o objectivo de cativar inteligências que não queriam deixar órfãs, a nova grelha de 2006 incluí uma maior diversidade que aposta no fado e reforça jazz, 'soul' e 'world music'.
Rui Pêgo disse em entrevista ao Diário de Notícias (em Outubro de 2005) que o serviço público "não pode ser uma coisa distante, razoavelmente institucionalizada, um bocadinho cinzenta, com uma arrogância intelectual absurda". Convido-os a ler o artigo completo.
Mas parece maldição da Antena 2 estar sempre a tentar conquistar novos públicos, afastando com isso os seus fiéis seguidores, e tornando-se naquilo de que pretende fugir: uma rádio elitista e hermética. Será que os senhores da rádio, como alguns senhores artistas, também acreditam que para inovar é necessário cortar radicalmente com o passado? Será que só o actual tem interesse? Talvez por isso a história se tenha esquecido com tanta facilidade…
Aconselho vivamente o seguinte programa de "Em nome do Ouvinte" da Antena 1, que constitui um dos seis programas dedicados à polémica da Antena 2, transmitidos entre 23 de Janeiro de 2009 e 27 de Fevereiro do mesmo ano. Várias opiniões são ouvidas, incluindo a do director da Antena 2, Rui Pêro.
Audiência
“Cultura não factura”3. Uma frase referida no meu trabalho inicial e que retracta na perfeição o que, direcção após direcção, se reflecte na Antena 2. Os baixos níveis de audiência são um facto, apesar das constantes tentativas de superação por parte das várias direcções. E será isto o resultado de uma programação elitista, dirigida a um público ultra-específico, ou será antes o reflexo do nível cultural do país? Uma coisa é certa, as grelhas de programação alteram-se visivelmente face aos objectivos das respectivas direcções, mas nenhuma delas conseguiu ainda a proeza de transformar as escassas décimas dos níveis de audiência em unidades.

Talvez este seja um esforço e uma guerra que não devessem ser combatidos apenas por uma estação de rádio e pelas insuficientes instituições que se dedicam à divulgação da cultura no nosso país. Talvez a descentralização da cultura seja o primeiro passo. Ninguém ouve música clássica porque nasce programado para isso. É um gosto que se educa, como a literatura ou a gastronomia. É uma vocação que muitas vezes passa despercebida, por falta de oportunidades ou condições financeiras. Num país onde apenas quem quer ser futebolista tem atenção e patrocínios, torna-se difícil estimular uma arte que é sinónimo de paixão e sacrifico, em que a modéstia reina em oposição ao reconhecimento, pois se este algum dia chega, é apenas depois de muito lutar. A realização, essa é essencialmente pessoal, não se materializando de forma mediática, como hoje em dia se almeja.
Como eu sempre ouvi desde pequenina, não se pode agradar a gregos e a troianos, por isso haverá sempre quem ouça a Antena 2 e quem a critique. Talvez a actual Antena 2 esteja a ser um pouco ambiciosa, tendo em conta o nível cultural geral do país. Afinal, já lá diz o povo, não se pode querer correr sem se saber andar.

1 in Diário de Notícias, 18 de Março de 1993, página 40; Artigo de João Botelho da Silva.2 Citando José Manuel Nunes in Rádio, Jornal Informativo da RDP; Série IV, Ano 9, nº 37, Março de 1994, página 11.3 Crónica de Pedro Mexia in Diário de Notícias, 21 de Março de 1993, página 46.



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