Em reflexão, nesta segunda parte do ensaio político, iniciado no mês anterior, está a governabilidade de um país ou a legitimidade democrática.
Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo
De acordo com um sábio aforismo “o melhor sistema de governo é, na realidade, a democracia unânime: o governo dos melhores cientificamente escolhido por todos. Antes da perfeição, porém, uma sábia ordem (e não uma “lei de acaso”) impõe múltiplas experimentações” (semente 158 do livro do Centro Lusitano de Unificação Cultural, "Sementes do Jardim de Morya" e "Pérolas de Luz").
Na introdução deste trabalho está dito que o ordenamento – ou hierarquia – é fundamental para o êxito de qualquer objectivo que se tenha em vista e que a estrutura piramidal corresponde em absoluto a essa ideia de ordem, sem a qual viveríamos num autêntico caos.
A unidade de objectivos essenciais e comuns, que subjazem à ideia de existência de qualquer nação, é simbolizada pelo vértice da pirâmide, sendo a diversidade de caracteres, idiossincrasias e qualidades de todos os cidadãos simbolizada pela sua base. Ou seja, a unidade está em cima e a diversidade está em baixo. Não que a diversidade deva ser reprimida, atrofiada ou extinta pela unidade, mas, sim, que ela seja o modo de expressão daquela unidade, através do universo dos cidadãos que a compõem, tal como a luz branca una se manifesta através das sete cores do prisma. Trata-se, no fundo, da hoje tão falada “unidade na diversidade”.
Mas não é a isso que assistimos na nossa vida “política”, no seu sentido mais restrito, isto é, na gestão da república (res publica, “coisa do povo”) e ocupação dos cargos dirigentes da “polis”, ou país. Não existe nenhum ideal ou espírito de unidade que presida às concepções, decisões, planos de acção nas mais variadas áreas de actividade que vinculem os cidadãos e, simultaneamente, os façam sentir-se realizados na construção de um mundo melhor, de acordo com as suas mais íntimas e reais vocações, virtuosismos, esforços, temperamentos, etc. Mais: esses mesmos dirigentes não sabem sequer o que os condiciona ou determina, nem o que implica receber, da parte dos cidadãos, a confiança e a responsabilidade de os representar dignamente.
Dirão os demagogos, por certo, que em democracia vence quem tem mais votos. Mas será essa a essência da democracia? Se sim, bastar-lhes-á (aos demagogos, ditadores, sofistas) lançar – ou manter – o povo nos antros da ignorância (que, para Platão – no Timeu –, é, a par da insânia ou demência, a outra doença da alma), do egoísmo, da maledicência, do oportunismo, da exclusão, do adestramento, etc., etc., etc., e quadrienalmente instigá-lo a escolher o seu salvador/governante, que lhe dará a felicidade na terra, que a do céu lha garantirá o salvador/sacerdote.
Por outras palavras, no nível superior da estrutura, onde devia estar o vértice da pirâmide (que representa a unidade na acção consciente e responsável), está a base, ou a diversidade das opiniões (maioritariamente inconsistentes, contraditórias e pueris), dos meros interesses pessoais, das ambições egoístas e conflituantes, dos desejos inconfessados, das paixões exacerbadas, em suma, das ilusões e crendices só comparavéis às difundidas pelas fraudes teológicas; e no nível inferior da estrutura, onde deveria estar a base, está a vontade de bem (a unidade espiritual dinâmica), reprimida pela insuportável pressão dessa promiscuidade de egoísmos. Enquanto persistir este quadro, a vontade de bem ver-se-á impedida de surgir à luz do dia e de servir o Bem Comum, a Justiça, a Verdade e a Beleza.
Temos portanto a pirâmide invertida, símbolo do caos e da permanente instabilidade, pelo que facilmente concluiremos (dando assim a machadada final nas pretensões dos demagogos, medíocres e ignorantes) que jamais será possível erigir-se uma construção num terreno acidentado (que é esta espécie de democracia) sobre uma estrutura sem a mínima possibilidade de se manter firmemente erguida.
Equívocos democráticos
A vida democrática por nós inconscientemente aceite enferma de equívocos insanáveis, que urge eliminar para bem da verdadeira Democracia, que é o poder do Povo, pelo Povo, para o Povo (isto é, dos cidadãos, pelos cidadãos e para os cidadãos, sem a exclusão de ninguém).
1. O primeiro equívoco é sobre o poder. Para que servirá o poder? Será para condicionar, sujeitar, excluir ou aviltar, a maioria, alguns, ou até um único cidadão? O estado geral do mundo mostra-nos ao que esse equívoco nos levou. Definitivamente, não! O poder existe para servir e a única legitimidade que deve ser reconhecida aos que o exercem é a de contribuir para a realização plena do conjunto dos cidadãos que formam a nação. Caso contrário, tais representantes serão tidos pela história verdadeira (não pela truncada e deturpada) como usurpadores, pois, na verdade, como se lê em qualquer dicionário, “apoderam-se astuciosa” (nas democracias) “ou violentamente” (nas ditaduras) “de uma coisa de que alguém legitimamente usufruiu ou que lhe pertence”. E que coisa é essa de que eles se apoderam? É “só” a dignidade, universalmente reconhecida, de todo e qualquer ser humano, dignidade inerente ao direito de participar na obra de construção de um mundo melhor, mais justo, mais belo, mais verdadeiro (numa perspectiva política), ou na Mente Universal, ou Pensamento Divino (numa perspectiva filosófico-religiosa), enquanto agente criador das mais sublimes e indeléveis expressões da Arte, da Ciência, da Filosofia e da Cultura. Para compreender melhor este conceito – “dignidade” – socorramo-nos de Kant: "No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade" (In "Fundamentação da Metafísica dos Costumes").
Por analogia, o serviço que os pais prestam aos filhos, ao longo do seu processo de educação, socialização e autonomia, tem como fonte o poder paternal consagrado e reconhecido por todos. Mas quando tal dever (mais do que direito) é violenta e abusivamente exercido, as vítimas indefesas são retiradas da sua alçada por um poder maior que tem em vista o seu verdadeiro bem. Ora, será isso que sucede nas relações do poder com os cidadãos, os reais destinatários da acção legislativa, executiva, judicial?
2. O segundo equívoco com que a demagogia [“o governo ou actuação política pautada pelo interesse imediato de agradar às massas populares, com o fim de alcançar o poder ou de o manter; situação política em que o poder é abandonado às multidões”, conforme consta dos dicionários] continua a iludir os cidadãos e é deveras espantoso.
Senão vejamos: como qualificaríamos um conjunto de associados que escolhesse um grupo de pessoas desconhecidas para dirigir a sua instituição cultural, sem saber se, no seio desse grupo, havia alguém desonesto? Mais: esse mesmo grupo tinha como foco central da sua campanha o auto-elogio e considerava-se ser o único capaz de dirigir a associação, apesar de nunca ter dado provas da sua competência ético-profissional em nenhum momento anterior, fazendo assim tábua rasa das virtudes da humildade, da discrição e da verdadeira sabedoria, que nunca é vaidosa, presunçosa, nem vexatória. No mínimo consideraríamos tais associados imprudentes e insensatos, para não dizer insanos ou dementes. E o mesmo diríamos não só de um cidadão que, numa acção judicial contra terceiros, contratasse um advogado totalmente estranho, ou sem sequer saber se este tinha sido escolhido pela parte contrária, como também de quem, de modo geral, se entregasse cegamente nas mãos de quem quer que fosse sem as mínimas garantias de segurança e idoneidade.
Ora, não é precisamente isso que sucede na relação entre eleitores e eleitos? Os candidatos aos cargos políticos são absolutamente desconhecidos dos eleitores para justificar a confiança que neles é cegamente depositada. Fará isto algum sentido? E que provas de competência e idoneidade possuem para merecer a nossa escolha livre e responsável, ou, por outras palavras, a nossa escolha verdadeiramente democrática?
Mas não é só isso que acontece. Os partidos políticos “legalmente” constituídos, em vez de preencher os seus núcleos e quadros especializados nas mais diversas áreas em que têm de intervir – quando, um dia, para tal forem “convocados” pelos cidadãos – com cidadãos solidamente dotados de uma ética irrepreensível, uma competência profissional inequívoca e com sólidas raízes no meio a que pertencem, apressam-se a aceitar todos os que decidem inscrever-se como militantes, sem qualquer preocupação em saber se vêm ou não imbuídos de espírito de servir o país e a comunidade. Pois se nem os próprios dirigentes partidários conhecem verdadeiramente os seus correligionários, como é que os eleitores os poderão conhecer? E, alargando o raciocínio, como é que poderão esses mesmos líderes conhecer a real natureza dos seus concidadãos eleitores e saber das suas reais aspirações, expectativas, vocações e potencialidades, para que, através da sua acção governativa lúcida e verdadeiramente educativa, possam estimular a sua exteriorização?
3. O terceiro equívoco – que nos escravizará enquanto persistir este género de democracia – pode ser resumido no velho sofisma com que o hábito, os séculos, a hipocrisia teológica e o correspondente cinismo político petrificaram as consciências dos governados: “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Basta-nos um único exemplo: a legislação imposta pelos partidos aos cidadãos sobre matéria tributária, fiscal e contabilística. De facto, está absolutamente vedada aos contribuintes a possibilidade de infringir a legislação aprovada pelos legisladores (isto é, por terceiros), sob pena de pesadas e graves sanções, por vezes desproporcionadas e precursoras de verdadeiras calamidades sociais. Ora, como se comportam os próprios mentores e autores dessa legislação quando se trata das contas e dos financiamentos partidários, isto é, quando actuam em causa própria? Vejam-se, a este propósito, os gastos com as campanhas eleitorais, o financiamento dos partidos políticos, etc. E quais são as consequências reais para os que infringem as leis que eles próprios aprovam?
Mas isto não nos faz recordar nada? Voltemos à velha dupla, à “eterna aliança”, poder clerical/poder temporal. A apologia da pobreza – de corpo e espírito (ou mente) –, como “via verde” segura para o reino do céu feita pela igreja, destina-se somente aos “fiéis”, mas não aos seus proclamadores, cuja ostentação e prodigalidade excessivas só são dignas de um “deus” feito à sua imagem e semelhança! A desmoralização, o desânimo e a submissão dos cidadãos por parte da conspiração teológico/política são os reais objectivos da sua acção insidiosa e nefasta, através da sua redução a acéfalos consumidores de bens perecíveis: da moeda, que lhes garante o paraíso na terra, e das missas por alma (mesmo antes da morte), que lhes asseguram o paraíso no céu. E o lema com que os atemorizam e iludem está bem sintetizado nas expressões: cada um por si; salve-se quem puder; olho por olho, dente por dente; homem/mulher de sucesso e quejandos.
Se legislar em causa própria é outro equívoco insanável – e por aqui ficaremos –, é apenas porque a maturidade e a sabedoria encontram-se apartadas dos seus indignos ideólogos e executores.
E assim, todo o governante ou agente político age de má-fé, exorbita de forma vergonhosamente inconcebível as suas funções, avilta e destrói a sua própria autoridade moral, sempre que, em nome do “Bem Comum” (e não é para esse fim que se candidata?), atribui a si mesmo e seus pares privilégios, sinecuras e prebendas (“empregos rendosos e que não obrigam a trabalho”, “rendas eclesiásticas”) que jamais ousaria submeter aos cidadãos em campanha eleitoral ou por referendo.
Aliás, a acumulação de funções que prolifera nos meios frequentados por dirigentes partidários, responsáveis políticos, gestores públicos e respectivo séquito, em especial nos nossos dias, quando cresce vertiginosamente o desemprego até no grupo dos recém-licenciados, são a melhor prova da insensibilidade, desrespeito e abuso de poder da (in)consciência dos seus detentores. Será assim tão difícil de perceber que uma remuneração mensal (das várias que aufere) de apenas um desses “gestores” tiraria da dependência (angustiante e sombria) dos progenitores pelo menos um ou até dois desses jovens licenciados?.
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