quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Relatório MacBride


Faz Segunda-Feira 30 anos que foi entregue, na UNESCO, o documento original da Nova Ordem Internacional da Informação. O objectivo: corrigir os desequilíbrios entre os países do Norte, produtores massivos de informação, e os do Sul, demasiado limitados à recepção.

Texto Dina Cristo



Em período de guerra fria, um grupo de países afro-asiáticos reune-se em Bandung para reivindicar uma agenda 3 D: descolonizar, desenvolver e desarmar. A conferência de 1955 marca a entrada na cena internacional dos países não alinhados, nações do terceiro mundo que reivindicavam, com base nos princípios da co-existência pacífica, o Pan Shyla, o direito de se manterem equidistantes dos dois blocos antagonistas, os EUA e a União Soviética. A cartilha de Bandung – cidade símbolo indonésio da resistência à colonização holandesa – é o espelho da filosofia da neutralidade.

Dois anos mais tarde é fundada A AIIMI – Associação Internacional para a Investigação dos “Media” e da Informação. Ali se reunem académicos de todo o mundo em prol de um ideal: a promoção da liberdade de imprensa e de um mundo pacific(ad)o. Entretanto, as mudanças geo-políticas que se dão a nível internacional alteram a visão de jornalistas, políticos e público sobre os “media”, que ganham cada vez mais centralidade.

Nos anos 70, a política internacional informativa tem um avanço considerável através de diversos encontros internacionais. Em 1972 é a Declaração Política sobre a Informação dos Países do Pacto Andino; em 1973 a dos chefes de Estado dos Países Não-Alinhados; em 1974, a Nova Ordem Económica Internacional é aprovada na 6º sessão extraordinária da ONU; em 1976, é exigida, na 19ª Conferência Geral da UNESCO, uma nova estrutura de intercâmbio informativo e em 1977 o tema começa a ser debatido num colóquio internacional em Bagdade. Um ano depois, Portugal é admitido, como membro, na Federação Internacional e na Organização Internacional de Jornalistas.
No último ano da década de 70 ocorrem ainda três importantes acontecimentos: o debate, em Kuala Lampur, sobre as políticas de comunicação na Ásia e Oceânia, a VI Conferência dos Países Não-Alinhados e reunião de especialistas em Comunicação que aprofundam os princípios básicos da nascente Nova Ordem Internacional da Informação (NOII), que em 1980 tem um desenvolvimento considerável.
Precisamente nesse ano, organizações representativas de 300 mil jornalistas profissionais de todos os continentes aprovam, no México, uma declaração que reclama a urgência da NOII – uma necessidade reafirmada no 4º plenário do Conselho Intergovernamental de Coordenação para a Informação dos Países Não-Alinhados, com vista a salvagurdar a sua herança e cooperação cultural, e na AFRICOM, uma reunião de 25 países africanos nos Camarões, através da Declaração de Yaundé; em Paris DEVCOM é elaborado o “Programa Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação” e, em Belgrado, na XXI Assembleia Geral da UNESCO, são apresentadas as resoluções preliminares do extenso estudo sobre os principais problemas mundiais da comunicação.
Documento A Comissão Internacional incumbida do Relatório, nomeada pelo Director-Geral da UNESCO, Amadeu Mathar M´Bow, é composta por peritos como Gabriel Garcia Marquez e Marshall MacLuhan, e presidida por Sean MacBride - Prémio Nobel da Paz, em 1974, Fundador da Aministia Internacional e antigo Ministro irlandês dos Negócios estrangeiros.
A Resolução, debatida em Outubro de 1980, reconhece o desequilíbrio do fluxo de informação e o direito de cada país informar a opinião pública mundial acerca dos seus interesses, aspirações e valores sócio-culturais, de qualquer indivíduo ou grupo aceder às fontes de dados, de todos os povos participarem nas trocas internacionais de informação e, assim, de forma mais activa no processo de comunicação.
Nos primeiros pontos que estabelecem as bases da NOII considera-se a eliminação dos efeitos de certos monopólios e concentrações excessivas, a defesa do pluralismo de fontes e canais de informação, a transmissão mais larga e equilibrada de ideias, a liberdade de imprensa e a responsabilidade dos jornalistas bem como a capacidade dos países em vias de desenvolvimento de melhorar, equipando-se, formando os seus quadros e aperfeiçoando as suas infra-estruturas com a ajuda sincera dos países desenvolvidos.
Portugal Nas conclusões do 1º Congresso dos Jornalistas Portugueses, sob o tema “liberdade de expressão – expressão da Liberdade”, realizado em 1983, o debate do desequilíbrio/necessidade de reequilibrar os fluxos de informação entre os países mais ricos e mais pobres faz-se notar. É o caso da dependência informativa de Portugal, da «(...) necessidade da criação de meios alternativos ao controlo da informação internacional» e do «(...) alargamento da rede de correspondentes portugueses no exterior»
[1].
Durante a reunião, efectuada na Fundação Calouste Gulbenkian, são várias as intervenções inspiradas em “Muitas vozes, um só mundo”. Fernando Correia retrata a desproporção: por um lado, uma meia dúzia de paises, de primeira, que funciona como centros internacionais difusores de informação – onde estão concentrados os grandes meios de comunicação, as quatro principais agências informativas (Associated Press, United Press, Reuter e France Press), os quadros humanos e as tecnologias – e por outro, a esmagadora maioria de países, de segunda, no papel de receptores passivos de informação.
O mesmo jornalista apresenta números do que designou por ‘imperialismo informativo’: «as quatro grandes agências citadas controlam, só por si, quase 80 por cento da informação que circula no mundo (...) do noticiário das grandes agências, apenas 20 a 30 por centro se refere aos países em vias de desenvolvimento, os quais no entanto abrangem três quartas partes da humanidade»
[2].

Fernando Correia
apontou igualmente o desequilíbrio qualitativo: «Os países de “primeira”, os que dominam a informação, inundam os outros com os seus êxitos, as suas virtudes, os seus costumes – também, claro está, as suas bebidas, os seus frigoríficos, os seus televisores, os seus automóveis... e os seus canhões. Dos países de “segunda”, aqueles apenas importam, para consumo interno – e para além das matérias-primas... – a chamada informação negativa, isto é, as calamidades, as guerras, os aspectos insólitos e folclóricos que nada adiantam, antes pelo contrário, ao conhecimento das realidades nacionais. (...) Dá-se notícia das guerras e dos desastres, das remodelações governamentais e das dificuldades internas, mas não se dedica uma palavra que seja, por exemplo, ao abnegado esforço popular na luta pela reconstrução nacional »[3].
A NOII insere-se, segundo o mesmo autor, na luta pela informação com base democrática, verdadeiramente independente, pelo desenvolvimento e progresso social. O papel de Portugal, defende, é duplo: o país podia ajudar a moderar os fluxos informativos, evitando a exploração informativa dos (novos) países africanos, por um lado, e de ser ele próprio vítima do que designou por “colonialismo informativo”: «A verdade é que os leitores, ouvintes e telespectadores portugueses sabem muitas vezes mais sobre os pensamentos e a acção dos senhores da Casa Branca ou as últimas movimentações na música “rock” anglo-saxónica do que, por exemplo, sobre a realidade social no Alentejo ou a actividade cultural das colectividades populares portuguesas»
[4].
«O colonialismo cultural administrado com violência pelas agências transnacionais de notícias, especializadas em desinformação e propaganda, é o que hoje fere mais profundamente»
[5], afirma Jorge Ribeiro, que fala de ‘terrrorismo informativo’, da informação como instrumento de domínio, das agências que designa como ‘centrais de mentira’, que preservam as estruturas de dominação, da ‘invasão de notícias’ que pôe em perigo a identidade nacional (citando o então presidente da Venezuela, Carlos Andres Perez), da exploração dos povos - bem patente em Portugal: «Folheie-se, ouça-se e veja-se quantas notícias por dia vão do litoral para o interior e quantas, por ano, chegam dos caminhos de cabras do interior aos gabinetes alcatifados em Lisboa»[6]. Para reequilibrar o fluxo de notícias, defende Jorge Ribeiro, há que romper com a dependência, abrir o diálogo Norte-Sul e criar uma circulação de notícias contra a corrente.
Fernando Semedo lembra que só as agências dos EUA controlam cerca de 65% do fluxo mundial de informação. Faltam, sublinha, afirmações profundas e correctas sobre a defesa da vida e da paz, os perigos e consequências do possível uso das armas e as alternativas disponíveis. Lembra igualmente a função social, cívica, moral, deontológica e intelectual do jornalista, por um lado, e das várias declarações e convenções que condenam não só o incitamento à guerra como defendem o empenho dos “media” ao nível do próprio desarmamento. «A Acta Final de Helsínquia, de 1975, defende que a cooperação internacional do domínio da informação deve contribuir para o “reforço da Paz e da compreensão entre os povos bem como para o enriquecimento espiritual da personalidade humana, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião»
[7] recorda.
Hoje

O relatório, lembra Carla Baptista, identifica a comunicação como um problema político estratégico, na definição da relação de poder entre países, atribui aos “media” uma grande eficácia na proliferação de sistemas económicos, sociais e culturais, reclama uma maior igualização nos fluxos trocados entre o Norte e o Sul e uma agenda mediática mais diversificada, justa e inclusiva das diferentes áreas geográficas. «O relatório recomendava ainda que se estimulasse o desenvolvimento do jornalismo de investigação, encarado como uma das feramentas de que a profissão dispunha para cumprir a sua missão de denúncia da corrupção,
das más práticas governativas e das violações dos direitos humanos»[8], lembra.
No início do séc. XXI, num mundo globalizado, cinquenta anos depois da criação da AIIM, aumenta a centralizadade da comunicação, a necessidade da co-regulação das redes comunicacionais e de uma prática mais multicultural, de inclusão e participação cívica, refere Carla Baptista. Na comemoração dos 25 anos do relatório, em 2005, o presidente da Comissão Internacional, mandatada pela UNESCO, recorda como então sentiu necessidade de reagir ao conceito de W. Randolph Herst de que “As notícias são aquilo que é interessante, não necessariamente aquilo que é importante”. Fica, também, a chamada de atenção de Jorge Ribeiro em congresso: «O facto de hoje noticiar um melhoramento na aldeia mais escondida, não porque é um benefício à população mas porque a “benfeitoria” fica à porta do cacique local, nada tem a ver com o diálogo Norte-Sul. Corre-se até um risco pior: se a atitude política que promove o acontecimento não for denunciada, é o campo da manipulação que se invade».

[1] AAVV – 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP, p.18 [2] CORREIA, Fernando – Algumas questões sobre a Nova Ordem Internacional da Informação in 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP , p.78 [3] Idem, p.78, 80. [4] Idem, p.80. [5] RIBEIRO, Jorge – Sobre a Nova Ordem internacional para a Informação in 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP, p.85 [6] RIBEIRO, Jorge – Sobre a Nova Ordem internacional para a Informação in 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP, p.84. [7] SEMEDO, Fernando – Da função intelectual e cívica do jornalista no elogio da vida e conquista da paz in 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP, p.59. [8] BAPTISTA, Carla –A investigação em ciências da comunicação já tem uma história para contar in JJ, nº32, p.37. [9] RIBEIRO, Jorge – Sobre a Nova Ordem internacional para a Informação in 1º Congresso dos jornalistas Portugueses – Conclusões , teses e documentos, Secretariado da Comissão Executiva ndo ICJP, p.84.

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