quarta-feira, 29 de abril de 2009

Terra de revoluções


Próximo dos 220 anos da Revolução Francesa, revemos dois séculos de espírito revolucionário. Serão as manifestações hoje indícios de uma nova rebelião?


Texto e fotografia Susana Nunes

Ao longo dos últimos meses, a imprensa revelou que Nicolas Sarkozy, o Presidente da República francês, exprimiu por várias vezes o mesmo receio: nem mais nem menos do que ter o “mesmo” destino que o rei destronado pela Revolução Francesa de 1789, Luís XVI. Pelos vistos, Nicolas Sarkozy considera ter vários pontos em comum com um dos poucos monarcas do mundo a ter sido decapitado. Primeiro e antes de mais, a bela esposa, com “Carlita” como uma versão moderna de Maria Antonieta, segundo, os conselheiros incompetentes, “pois nada é bem feito se não for feito por ele mesmo” e, por último, mas bem mais importante, estes franceses ingratos, sempre prontos para a rebelião, completamente ingovernáveis…
Numa altura em que a polícia teme a falta de efectivos para lidar com as várias manifestações que surgem espontaneamente um pouco por todo o lado na cidade de Paris, será que está para breve uma nova Revolução francesa? O espírito “sans-culotte”, literalmente “sem-calções”, (que nada tem de exibicionista: apenas faz referência ao hábito do povo que não usava calções como os nobres da altura), vive este ainda entre os franceses?
Durante muito tempo, mesmo após o Império de Napoleão ter sucedido à República revolucionária, os franceses continuaram a alimentar a chama da Revolução, e não apenas por ocasião da habitual degustação de uma cabeça de novilho no dia do aniversário da decapitação de Luís XVI: de facto, todo o século XIX foi ritmado por espasmos revolucionários, que frequentemente se propagaram por a toda a Europa, em 1830, 1848 e em 1870. Durante esta época, os tumultos que se fizeram sentir na política francesa determinaram uma boa parte do destino dos povos da Europa. Bastava um mínimo sinal de vida por parte do povo francês para que os restantes soberanos do continente tremessem (excepto, talvez, a rainha de Inglaterra). E, no século XX, se foram as guerras que ritmaram a História, a França não deixou de viver ao ritmo das lutas sociais: movimentos insurrectos antes da I Guerra Mundial, Frente Popular nos anos 30, greves gerais do após guerra... até ao Maio de 68.
Sentido revolucionário
Esta não foi apenas mais uma revolta estudantil, mas também, e sobretudo, uma enorme greve geral (três semanas de greve, nove milhões de grevistas) e um movimento internacional que agitou diferentes povos, desde os Estados Unidos às democracias populares. Novamente, a França parecia revelar o caminho… Mas, curiosamente, é em 68 que a França parece perder aquilo que a tornava tão particular: a capacidade de colocar o sistema em questão para fazer nascer uma sociedade e instituições melhores, mais justas. Maio de 68 foi uma revolução que ficou a meio e que deixou profundas sequelas na mentalidade colectiva dos franceses. Os seus intelectuais, que, de Voltaire a Sartre e Camus, estiveram sempre na frente de combate pela defesa da herança das Luzes, perderam quase todos a credibilidade, tendo sido “substituídos” pelos intelectuais liberais. A Revolução francesa tornou-se numa referência cada vez mais desacreditada.[1] Os marxistas vêem nela principalmente o triunfo da burguesia. Os liberais vêem a génese dos totalitarismos do século XX e, hoje em dia, do terrorismo. Alguns radicais vêem a origem de uma sociedade que defende a dominação branca em nome do universal, incapaz de ter em conta a diversidade humana. A República, neste contexto passou a ser considerada como um regime não revolucionário, um emblema da pacificação social, da ordem. Poderá a República ainda ser revolucionária?
Desde a ascensão da República que as querelas sobre o sentido da Revolução se tinham atenuado. Para a cultura republicana, e como afirmava Clemenceau, “a minha revolução é um bloco”. Foi precisamente para se apagar a chama revolucionária, que se atacou a sua fundação, em 1789. Os liberais dos anos 1970, e especialmente um certo François Furet, destruíram este consenso republicano para desacreditar definitivamente o gosto francês pelas revoluções. “Na véspera de uma data potencialmente perigosa, o bicentenário da Revolução, foi publicado um enorme “Dicionário Crítico da Revolução Francesa” (1200 páginas), abordando eventos, actores, instituições e ideias. As suas centenas de entradas, escritas por cerca de 20 contribuidores escolhidos a dedo, proporcionaram uma base de refutação de algumas lendas de esquerda e de equívocos tradicionais do episódio fundador da democracia moderna. O grandioso impacto deste compêndio de conhecimento moderado, criado e executado de forma impressionante, acabou com qualquer perigo de festejos dos neo-jacobinos em 1989. Quando o bicentenário chegou, Furet foi o incontestável mestre intelectual de cerimónias, enquanto a França prestou homenagem aos princípios fundadores – devidamente clarificados – de 1789, e voltou as costas às últimas atrocidades de 1794. Eliminar o passado errado, e recuperar o certo, foi essencial e inevitável para a chegada atrasada do país ao porto seguro da democracia moderna”. Esquecendo que o período do “Terror” salvou a Revolução face aos exércitos dos soberanos europeus e às insurreições camponesas manipuladas pelos monarquistas, e que a Revolução “deu à França um corpo sólido de camponeses proprietários, ainda hoje considerado como um factor essencial de estabilidade política”
[2], a realidade social foi “transfigurada pelas palavras dos ‘representantes do povo’”[3] e o regime tornou-se numa República burguesa respeitante do direito, e, portanto, da propriedade dos ricos, e protegida das “mudanças de humor” do povo por um sistema representativo. A maneira como se chegou a esta fase não é um mistério: o patronato agiu sorrateiramente, a liberalização liquidou os sindicatos, a queda da URSS liquidou os comunistas, a esquerda desapontou no poder, a direita soube aproveitar-se da revolução conservadora liberal e do populismo e a televisão, privatizada, lavou os espíritos e promoveu líderes de opinião e intelectuais medíocres.Debate público
Algo que é realmente característico ao povo francês é a discussão interminável sobre os princípios e os significados de qualquer acção ou acontecimento. Num artigo publicado na revista Multitudes sobre François Furet, Berger e Riot-Sarcey mencionam o facto de o circuito semiótico ser “o mestre absoluto da política”
[4]. A Revolução Francesa não poderia ser um melhor exemplo: “Trata-se de se saber quem representa o povo, a igualdade, ou a nação: é a capacidade de se ocupar esta posição simbólica, e de a conservar, que define a vitória”[5]. Como refere Jacques Guilhaumou, no artigo “La haine de la Révolution française, une forme de haine de la démocratie”, basta uma denunciação de uma revolução individualista e insistir-se no preço desta revolução[6] para que a revolução social passe para segundo plano e o discurso sobre a democracia se inverta[7]. Neste mesmo artigo, Guilhaumou relembra as palavras de Rancière: “o termo democracia, visto pelo lado negativo, torna-se indistinto do de totalitarismo, substitui-o”. Segundo Hobsbawm[8], verificou-se assim uma marginalização da revolução, e, para se recuperar o seu verdadeiro significado, será necessário discuti-la tendo-se em conta o seu contexto histórico e não o dos dias de hoje, sem se estar ao serviço da política actual. O livro deste autor britânico, “Às armas historiadores. Dois séculos da história da Revolução francesa”, publicado na altura do bicentenário da Revolução, foi imediatamente traduzido pelos editores italianos e espanhóis. No entanto, nenhum editor do próprio país da Revolução decidiu adquirir os direitos de reprodução e publicar a obra em francês, mesmo se bastantes outras obras sobre este acontecimento, mesmo estrangeiras, foram publicadas na altura e nos anos que se seguiram. Na verdade, verificou-se uma grande relutância por parte dos grandes editores franceses face aos autores e trabalhos abertamente contra a ideologia dominante. A sua publicação em 2007 talvez indique que a situação esteja a começar a mudar…
Como comenta Perry Anderson, “A França é, de todos os países europeus, o mais difícil para qualquer estrangeiro de descrever. A sua irascibilidade é o resultado, em primeiro lugar, de tudo o que os franceses produzem sobre eles mesmos, numa dimensão inimaginável em nenhum outro país. Setenta títulos apenas sobre a campanha eleitoral de 2002. Dois mil livros sobre Mitterand. Três mil sobre De Gaulle.”
[9]. Como o próprio De Gaulle afirmou, “A França é inconcebível sem grandiosidade”. Mesmo a língua francesa, outrora a língua do Iluminismo e durante muito tempo o idioma utilizado nas relações diplomáticas mundiais, é sentida como uma língua universal e associada à ideia de civilização francesa (mais do que apenas cultura).Resistência
Se existe um país que tem a revolução na alma, este país é a França. Mesmo hoje, em que o conformismo e o politicamente correcto parecem estar bem presentes e que “a ideia de revolução está em crise”
[10], as ruas desafiam repetidamente o governo: em 1984, em 1986 e, mais recentemente, em 1995, seis semanas de greve consecutivas que bloquearam qualquer tipo de serviço público e uma desordem a nível nacional, que levou à vitória do movimento. Não há, portanto, dúvidas de que a “inflamabilidade popular” é algo inerente ao povo francês. Desde que estou em Paris que já assisti a duas grandes greves gerais. A última, a 19 de Março, reuniu entre 3,23 milhões e um milhão e meio de manifestantes (número oficial), em todo o país. As universidades já estão em greve há mais de um mês, ocasionalmente com direito a portas bloqueadas pelo batalhão de choque. A polícia não sabe como lidar com as manifestações que cada vez se tornam mais espontâneas e imprevisíveis. Há duas semanas que, todos os dias, continuamente, oiço os jambés dos trabalhadores do KFC da esquina (restaurante da cadeia de fast-food Kentucky Fried Chicken). Tomaram o restaurante e estão em greve, exigem que o KFC assine as suas carteiras de trabalho (alguns já estão a trabalhar ilegalmente nestas condições há 10 anos e correm agora o risco de serem expulsos do país). Decididamente, existe um paralelo entre a França pré-revolucionária e a França actual: a ignorância por parte da elite da realidade do povo (“la France d’en bas”). Existe mesmo uma espécie de piada (ou história verídica?) que ilustra perfeitamente esta situação: antes da Revolução de 1789, Maria Antonieta ouve a população que se manifesta e pergunta qual é a razão de tanta algazarra. Esta não percebe o porquê do descontentamento: se eles não têm pão, porque não comem brioche? (É importante salientar que brioche é uma espécie de pão-de-leite, um pão doce, o qual, obviamente, não fazia parte do regime alimentar do povo.)Vocação
Para se encontrar a verdadeira França, aquela que resiste e que se revolta, não se pode procurar nos lugares míticos da Revolução, as Tulherias ou a Bastilha. A prisão já não existe, foi imediatamente demolida após o 14 de Julho por um empresário da construção e pelos seus empregados. Esta não abrigava na véspera do 14 de Julho mais do que uma dezena de prisioneiros – a maior parte filhos de boas famílias em prisão temporária por embriaguez, e, pelos vistos, existiu mesmo uma conspiração que dirigiu astuciosamente a cólera do povo para esta velha prisão, por pura especulação imobiliária! É também inútil procurar-se esta França na universidade Sorbonne ou no bairro de “Germain des Prés”, que outrora abrigaram a contestação e os intelectuais, mas onde actualmente nos cruzamos com mais polícias do que estudantes. Para se encontrar a França de amanhã, aquela que, talvez em breve, voltará a fazer História, é preciso apanhar-se o metro e afastar-se do centro de Paris. É preciso olhar-se para esta juventude urbana mestiça que se revoltou violentamente em 2005, suscitando a atenção de todo o mundo. É preciso olhar-se para a França “média” da província que teme que os seus filhos não consigam, pelo menos, alcançar o mesmo estilo de vida que os pais, perdendo o conforto conquistado arduamente pelas gerações anteriores. São estes quem fará a próxima revolução.

[1] ANDERSON, Perry (2004), "Dégringolade”, in London Review of Books; [2] HOBSBAWM, Eric (2007), Aux armes, historiens. Deux siècles d’histoire de la Révolution française. La Découverte; [3] BERGER, Denis, RIOT-SARCEY, Michèle (2005), “Francois Furet : l’histoire comme idéologie”, Multitudes; [4] Ibidem; [5] Ibidem; [6] HOBSBAWM, Eric, “Aux armes, historiens !”, programa especial da emissão radiofónica “Là-bas si j'y suis”, de Daniel Mermet, difundida pela rádio France Inter, a 8 de Janeiro de 2008; [7] GUILHAUMOU, Jacques (2006), “La haine de la Révolution française, une forme de haine de la démocratie”, in Révolution Française.net; [8] HOBSBAWM, Eric, “Aux armes, historiens !”, programa especial da emissão radiofónica “Là-bas si j'y suis”, de Daniel Mermet, difundida pela rádio France Inter, a 8 de Janeiro de 2008; [9] ANDERSON, Perry (2004), "Dégringolade”, in London Review of Books; [10] BERGER, Denis, RIOT-SARCEY, Michèle (2005), “Francois Furet : l’histoire comme idéologie”, Multitudes.

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quarta-feira, 22 de abril de 2009

Forte beleza


Vista da Fortaleza
Perto do 25 de Abril e alguns dias após o Dia Internacional dos Monumentos (DIM) recordamos um que foi prisão política em Portugal e é, há um quarto de século, Museu da Resistência. Trata-se da fortaleza de Peniche - que está a comemorar 400 anos da elevação a cidade - agora projectada para se transformar em pousada, com a apreensão da Associação Não Apaguem a Memória. Uma história secular evocada num texto escrito há mais de duas décadas.


Texto e fotografia Dina Cristo

As muralhas elevam-se sobre rocha, recortam no céu o perfil estranho das ameias e baluartes. Esta maciça e altiva construção tem cerca de 20 mil m2, é composta por quatro frentes regularmente baluartadas nos vértices, no entanto, a restante linha marginal segue as ondulações das rochas escarpadas, que constituem a sua base.
A ligação definitiva da ilha de Peniche ao continente provocou uma profunda transformação na distribuição demográfica, organização social e valorização económica da vila. No séc.XV (altura em que Peniche sofre o repovoamento) Portugal dispunha de quatro locais pelos quais facilmente se desembarcava: Chaves, Peniche, os rios Tejo e Guadiana. Destas áreas era efectivamente Peniche que apresentava maiores facilidades de acesso, permitindo o desembarque de muitos milhares de combatentes, independentemente do estado do tempo.
Portugal via-se constantemente ameaçado pelos corsários, prontos ao assalto e traficância, tal como os barcos inimigos que aproavam à terra com o objectivo de derrotar as forças portuguesas, destruindo e furtando no mínimo os bens dos habitantes. Estes, muito indefesos, eram na maior parte transformados reféns no mercado de escravos.
Assim desprotegida, Peniche representava um grave perigo no domínio político-militar, uma vez que se situava próximo de locais de alto valor estratégico e era habitat de grande parte da nossa população.
Mas após tantos séculos, o sonho tornar-se-ia realidade, começando a ser palpável a resposta ao problema defensivo do qual o litoral tanto carecia. Finalmente, chegado que era o ano de 1557, D. João III concretizava a idealização do seu pai. Aliás, já no séc.XV D. Manuel havia mandado construir um pequeno castelo.
Quatro séculos e meio A primeira construção a tomar formas palpáveis e precisas foi o redondo, terminado logo em 1558, já no reinado de D. Sebastião. A obra foi orientada por D. Luís de Ataíde, que teve igualmente a seu cargo as obras adjacentes. Até 1567 a edificação era constituída pela dita torre e a muralha a sul – de modo a poder receber guarnições. Entretanto, para fazer face às despesas, são lançados (entre 1567 e 1577) impostos sobre o pescado.
O forte seria interrompido entre 1568 e 1572, durante a ausência do nosso Vice-Rei na Índia, tal como em 1577, altura em que o traçado ficou algo semelhante ao actual. Após o seu término parcial, serviu no combate das tropas inglesas aquando do desembarque de 12 mil homens postos à disposição de D. António Prior do Crato – na sua tentativa infundada de derrube à intrusão filipina.
Aquando do reinado dos Filipes são construídos alguns redutos – fase concluída já no reinado de D. João IV, desta feita sob as ordens de D. Jerónimo de Ataíde.
O sistema fica terminado em 1645 (sem atingir os dois mil réis), posteriormente ampliado e aperfeiçoado consoante as necessidades. E foi no termo da edificação que Peniche foi considerada uma praça de guerra de primeira ordem, governada de início por um general e mais tarde por um coronel.
Cinco anos mais tarde Nicolau de Langres traça a planta do muralhamento oriental, construído nas suas linhas gerais e durante algumas décadas.
A cintura das muralhas ficara concluída com a edificação ulterior dos fortes, baluartes, baterias e alguns entrincheiramentos. Mais tarde, durante oito meses na primeira década do séc.XIX, a fortaleza sofre as agruras da invasão francesa, embora Junot, por um mal entendido, mande restaurar algumas áreas.
Mas a cidadela foi ainda objecto de trabalho por parte de reis portugueses como D. Miguel e D. Luís tal como pelo marechal Beresford.
Ao longo do século começa a ultrapassar o seu passado militar uma vez que se torna depósito prisional. Por lá passaram franceses encarcerados pelos miguelistas, boers, prisioneiros alemães, políticos opositores do regime do Estado Novo e depois político-policiais do mesmo e, finalmente, famílias retornadas.
Definitivamente liberta a cidadela, é assumida pela Câmara a responsabilidade da sua dinamização e integração na vida dos cidadãos sendo palco de várias manifestações culturais.

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quarta-feira, 15 de abril de 2009

Vida simples


No próximo Sábado começa a Semana Internacional de Downshifting, um movimento que propõe, há 14 anos, a simplicidade como modo de vida: decrescer, desacelerar e viver mais com menos; ser simples por fora e rico por dentro.

Texto e desenho* Dina Cristo

Num momento de crise, em que se continua a insistir nas políticas de crédito, consumo e crescimento económico, a simplicidade voluntária (re)surge com uma visão alternativa para a solução dos problemas gerados na sequência do excesso de produção e consumo da era industrial, nomeadamente os ambientais.
Recuperando de tempos ancestrais a ideia de despojamento material, os adeptos e teóricos deste movimento sócio-cultural propõem a sua aplicação nos nossos dias, nomeadamente na Austrália, Brasil, EUA ou Grã-Bretanha.
Desde Lao Tsé, S. Francisco de Assis, até Thoreau ou Gregg**, vários têm sido os autores a proclamar que o dinheiro não traz felicidade, pelo contrário. Há cerca de 30 anos foi a vez de Duane Elgin escrever “simplicidade voluntária”. De então para cá o movimento cresceu e desenvolveu-se. Em “Jardim da simplicidade”, o autor actualiza a concepção de vida simples e descreve dez áreas onde é influente.
São vários os dinamizadores das atitudes simples. Vicki Robin ensina a não gastar dinheiro e a calcular o salário real (subtraindo todas as despesas que acarreta e o tempo efectivo que consome), Jorge Mello lidera as acções no Brasil e Tracey Smith, fundadora da Semana, então nacional, de Downshifting, ocupa-se (a aconselhar indivíduos, empresas e escolas) em reduzir os desperdícios e transformar o lixo em recurso. Algumas das suas sugestões passam por desligar a televisão, largar o cartão de crédito, dar alguns dos seus bens ou cozinhar.
Hoje, este modo de viver melhor com menos é praticado por empresas como a Simple Living Network, pessoas comuns, ou publicamente conhecidas enquanto meios de comunicação tradicionais vão-se adaptando às últimas desta vontade de simplificar a vida.
Decrescer
O movimento assenta em cinco valores básicos: simplificação material, escala humana (pequeno é belo), auto-determinação, consciência ecológica e desenvolvimento pessoal. A sua atitude passa por desprender-se de tudo o que não é essencial e não contribui para a felicidade. Desta forma, por vezes, trocam empregos de prestígio e bem pagos por outros onde auferem menos salários mas gastam menos tempo obtendo maiores níveis de satisfação.
Dispensam salários bem remunerados em carreiras de sucesso, mas plenas de stress e em áreas que não os realiza, para despenderem de mais tempo, necessitando de menos recursos económicos, em actividades de lazer, criativas, vida familiar e auto-conhecimento.
Trata-se de uma opção, consciente e voluntária (ao contrário das vítimas de uma pobreza inesperada e indesejada, os chamados novos pobres), de troca de dinheiro por tempo. Estes homens e mulheres, com uma atitude mais amiga do ambiente, de consumo mais responsável e consciente, acabam por ter menos necessidades a satisfazer e, portanto, menos gastos a realizar. Prescindem do estatuto social em troca de mais tempo que dedicam a si próprios, aos seus e à sua comunidade.
Têm por princípio que ter menos é (poder) ser mais. Um dos objectivos é harmonizar o trabalho com a vida, o crescimento exterior, objectivo e materialista, com o desenvolvimento interior, mais subjectivo e espiritual, os valores masculinos com os femininos.
A proposta que corre mundo e se popularizou é, pois, menos trabalho, dinheiro, abuso de recursos de todo o género, luxo, consumo e pegada ecológica por mais tempo, lazer, liberdade, paz, relaxamento, realização, iluminação, independência e, enfim, uma vida com qualidade e significado.
Abnegação
Enquanto uma parte se preocupa em recuperar rapidamente da crise económica, lutando para repor os níveis de desperdício e ostentação material, estes humanos despem-se da luxúria e ocupam-se em focar no essencial, o que para cada um tem valor, sentido e significado e o faz sentir bem, satisfeito e feliz. Em vez de acumular (mais) bens, desfazem-se deles.
Escolher uma vida simples não significa, no entanto, optar uma vi(d)a pobre ou ascética. Como explica Duane Elgin o objectivo é atingir um nível intermédio, entre a carência e o excesso, que seja adequado para a pessoa. Decidir-se por uma vida simplificada exteriormente não significa sacrifício mas gratificação, pois há uma exploração em direcção ao interior humano. Tal implica maior profundidade e, nesse sentido, maior abundância e plenitude.
Livres dos pormenores que (dis)traem, estas pessoas focam-se no que é importante e básico para si. Ficam também com mais “espaço” para os outros. Encontrada a sua intimidade essencial estão disponíveis para a vida cívica e comunitária, como o trabalho voluntário.
Há uma espécie de religação entre o seu ser profundo ao âmago do universo e de todos os seres. Sentem-se, portanto, mais completos, livres e realizados. O seu “apelo” é, pois, em prol de um decrescimento exterior, de uma desaceleração, de ter o suficiente para viver, o adequado para si, aquilo que, em consciência, lhes é apropriado e indicado.

Menos é mais

Preferem o menos ao mais, a qualidade à quantidade, o mais pequeno ao maior, o simples ao complexo, a vontade de ser ao vício de ter, o relaxamento aos nervos, o desenvolvimento ao crescimento, a ajuda à exploração, o desapego ao desejo – que distinguem de necessidade, tal como o sucesso da realização. Elegem a riqueza da simplicidade à pobreza da complexidade (nomeadamente a burocrática).
Trabalham para viver em vez de viver para trabalhar. Privilegiam produtos duráveis (e não descartáveis), belos e úteis. Defendem a tecnologia intermédia (e não a alta tecnologia), a (est)ética, a responsabilidade, a cooperação, a conservação e a natureza. Propõem a redução da actividade, velocidade e intensidade e princípios como o equilíbrio, a moderação, o respeito (por todos os seres e gerações), a reflexão, a redução, a frugalidade, a tolerância, a diversidade são uma presença constante.
Prescindir do supérfluo, reduzir o desperdício, limitar o consumo ao essencial eis um novo modelo de atitudes e comportamentos numa nova era mais ecológica e solidária. Optar, conscientemente, por viver de forma despojada, mais livre e despreocupada, recuperando a qualidade de tempo e de vida, numa trilogia - ecologia-saúde-frugalidade - que os partidos ecologistas têm vindo a propor.
Uma ideia estudada e posta em prática em Portugal por pessoas e empresas que no dia-a-dia tornam efectiva a mudança para o modo de vida simples, baseado no fundamental, dezassete anos depois da tomada de posição e avisos de cerca de 1600 cientistas.

* Anos 70
**Alguns livros: CALLENBACH, Ernest – Living poor with style. DeGraaf – Affluenza: the all-consuming epidemic. DOMINGUEZ, Joe; ROBIN, Vicki – Dinheiro e vida. Cultrix. 2007. ELGIN, Duane – Voluntary simplicity. 1981. ELGIN, Duane – A garden of simplicity. GREGG, Richard – The value of voluntary simplicity. 1936. KINGSOLVER, Barbara – Animal, vegetable, miracle: a year of food life. MONGEAU, Serge – La simplicité volontaire: plus que jamais. POWYS, John Cowper – A philosophy of solitude. ROBERTSON, James – A new economics of sustainable development. SALT, Henry Stephens – simplification, the saner method of living. SCHUMACHER, E. F. - Small is Beautiful. 1973. SMITH, Tracey – The book of rubbish ideas. TIMOTHY FERRIS – 4-hours workweek: escape 9-5 THOREAU, Henry David – Walden. 1854

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quarta-feira, 8 de abril de 2009

Anti-depressivos?


Após o Dia Mundial da Saúde, natural, sem medicamentos, tratamos a depressão. Vista como um inimigo a debelar, o quanto antes, ela é uma animadora em potência. Desde que vivida de forma autêntica, pode transmutar a tristeza em alegria e a angústia numa profunda paz de espírito. Basta deixá-la manifestar que depressa se dissipa.

Texto Dina Cristo

Além dos medicamentos, os pensamentos e sentimentos negativos são uma das causas mais comuns da depressão. Um deles é a culpa. Sentir-se culpado, sem capacidade de controlar uma situação (exterior) adversa leva, algumas vezes, à “queda” interior.
Estar depressivo é não ter energia, vontade ou motivação, por vezes, para as necessidades mais básicas, como a alimentação, a higiene, ou mesmo o vestir-se. Enfrentar-se a apatia, indolência e mal-estar é muitas vezes o princípio do fim da própria situação. A mudança para um estado melhor e mais saudável acontece, de forma espontânea.
Mas como se passa da passividade à actividade, da descrença ao desejo de agir, da fraqueza à força para empreender de modo autêntico? Não lhe virar a cara, aceitar o estado depressivo é o primeiro passo para o transcender. Resistir-lhe, através de comprimidos ou falsas reacções, é o caminho mais longo para a cura.

O que é?

A depressão representa um desequilíbrio entre o estado interior e as exigências exteriores, entre o querer e o ter de fazer, entre o que se sente e o que a sociedade “obriga” a expressar. Deprimir é muitas vezes o sinal de desarmonia entre o que se é e a imagem que se ostenta, daquilo que se gostava de ser ou que os outros exigem que se pareça.
Nesse sentido estar deprimido é um sintoma de um mal-estar, um desalinhamento entre o ser mais íntimo e a actuação social. Pode ser igualmente um sinal de desajustamento entre os desejos da personalidade e a vontade da alma, de cujo fado (tão) português é uma expressão sublime.
Numa sociedade desassossegada, permanentemente agitada em correria contra o tempo, o estado passivo a que a depressão induz é mal aceite. Como afirma Ana Paula Rocha, psicóloga e psicanalista: «O par complementar – inflação narcísica e sadismo – muitas vezes mais não é do que a reacção e defesa contra a condição depressiva”. Prefere-se, (ainda) assim, a hiperactividade - o outro lado da depressão.
Contudo, ela não é mais do que o resultado de nódulos psicológicos que anteriormente não foram desatados e se acumularam. Revelam-se mais tarde em bloqueios que obrigam a parar, seja através de uma doença, um acidente ou incidente que despoleta a letargia, a incapacidade de reagir. “De repente” os nós esticam e apertam-se de tal forma que a dor, não (devidamente) processada, se evidencia. A pessoa, diz-se, encontra-se esgotada, de tanto nervoso acumulado.

(In)aceitável

Material e imediatamente improdutivo, este estado de paralização é considerado um autêntico atraso de vida que, numa sociedade orientada para o lucro e a produção, é considerado algo a eliminar, o mais urgentemente possível. E assim, aos primeiros indícios de “fraqueza” o médico receita um anti-depressivo. Medicina preventiva, argumenta, que visa evitar o agravamento da situação e, para precaver um eventual suicídio, o melhor é receitar naquele instante o fármaco não vá o sintoma de efeitos secundários dos outros químicos se manifestar novamente.
Medicamentos, stress, pensamentos negativos, falta de auto-confiança são, pois, algumas das suas várias causas. A primeira reacção pode ser, portanto, afastá-la. Mas e se a atitude for enfrentá-la, que acontecerá? Em casos comuns se o indivíduo aceitar o seu estado de espírito, ele conduzi-lo-á mais longe, ou seja, a estados de pensamento e sentimento mais profundos do que os habituais.
Na verdade, a pessoa que deprime pode atingir o mundo de Hades, o subterrâneo de onde se poderá elevar até às alturas até então impensáveis. Quanto mais auscultar a terra mais facilmente poderá perscrutar o céu. O estado bipolar é um exemplo do qual nascem criações artísticas de extraordinário valor. Se tivéssemos medicamentado os nossos escritores e artistas não teríamos hoje belas obras das artes e das letras, incluindo em Portugal, onde Fernando Pessoa é um dos exemplos.

Faz bem?

Deprimir traz inúmeras vantagens pouco conhecidas e discutidas. Sendo resultado, quantas vezes, de uma desilusão, ela permite logo à partida ajustar a percepção individual à realidade do mundo. Traz consigo um aprimorar de conhecimento e consciência ao qual é necessário algum tempo para reajustamento da personalidade que, até ali, acreditava ser outra a verdade. É o “preço” de conhecer mais e melhor a realidade.
Se enfrentada, aceite e vivida, a depressão gera uma limpeza psicológica e uma arrumação mental em que após tal libertação de resíduos, o indivíduo fortalece-se, amadurece, desenvolve-se e renova-se. Actualiza-se consigo próprio, com a sua renovada visão de si, do mundo, das coisas e das pessoas. De nervoso, angustiado e indiferente, a pessoa, antes doente, renasce naturalmente vitalizada, confiante e sensibilizada. Humaniza-se.
No livro “Guia dos remédios caseiros para a depressão” editado, pela primeira vez, em 2002, através da Plátano Editora, diversas autoridades mundiais deixam variados conselhos para a remediar. De uma forma simples estão disponíveis mais de cem indicações acerca do humor, da dieta, do pensamento e da descontracção.
A toma do floral Mustard (para quando não há causa conhecida) ou dar um passeio são algumas das formas de a aliviar. O ideal é usar o Sábado, dia tradicionalmente dedicado ao descanso, para fazer o processamento das ocorrências da semana; aproveitá-lo para perdoar a si e ao outro, numa atitude de (auto)conhecimento e compreensão (mútua). Dessa forma, os detritos dos pensamentos, emoções e acções semanais não se acumularão fazendo-se repercutir mais tarde.
Tal não quer dizer que se esteja curado. Ninguém se pode livrar da depressão, como não se pode anular a noite ou o Inverno. São partes inseparáveis do universo e estão ali como reserva de energia e valor do dia ou do Verão. Não são inimigos - antes pelo contrário. Os sentimentos e pensamentos que nos fazem viver são essenciais ao crescimento. Sem eles, jamais o Ser Humano evoluiria e progrediria, pois é nas fraquezas que se reforça a vontade de existir.
A depressão é como um sinal de alerta. Ela guia, conduz e orienta. Querer escondê-la através de anti-depressivos, por exemplo, seria como continuar a conduzir um carro cujas luzes de alerta se cortam, só para ocultar que o vermelho nos indique sinal de perigo. Os sintomas depressivos devem, pois, serem levados em conta e lidos como formas de prevenção para doenças posteriores e mais graves. O perigo está na resistência.
As mulheres, que tendem a ser mais depressivas, têm nos Sintomas Pré-Menstruais vários tipos de depressão que, nessa época, se manifestam com mais vigor. Será uma altura adaptada para efectuar a limpeza das dores do corpo emocional. Também as pessoas de sangue negativo, de carácter mais introvertido, passivo e reflectido, serão mais propícias aos estados de prostração. Igualmente os indivíduos com baixos níveis de serotonina (cujo precursor é o triptofano), libertada com o sol, por exemplo, tendem aos estados de crise.

Animar

Quem não deprime sobrevive à superfície e na periferia do (seu) mundo. Nem sempre estar bem-disposto é sinal de felicidade. É preciso ser forte para dizer “sim” ao desafio que representa a depressão, estar ou ir para baixo, para a fossa, como se diz no Brasil, e ter a coragem de ir ao fundo de si próprio.
O desafio é comunicar consigo, estar à vontade com o seu lado mais sombrio, lunar e vulnerável. É ser capaz de estabelecer intimidade consigo e compreender, aceitar e respeitar o que se (não) é, o que se (não) quer, o que se (não) deseja. É ser capaz de se re-conhecer e agir de acordo com a consciência, agora mais afinada.
A depressão corresponde a um momento de vida (mais) subjectiva e passiva, um espaço de silêncio (externo) para uma pausa e introspecção, para se sentir, dos medos aos desejos, os estados de alma não mediatos. Parar é morrer, por momentos, para a vida mais objectiva, exterior e agitada. É actualizar-se com a sua realidade interna. É encarar as raivas, ódios, rancores e mágoas, escondidos ao longo dos dias, e expressá-los (através da escrita, da fala, da arte ou mesmo das lágrimas). Dessa forma se extinguem e desaparecem. O seu lugar deixará espaço disponível, doravante, para a bondade e o amor.
As nódoas foram purificadas, as disfunções reconhecidas, a dor ultrapassada. E a cada vale superado é melhor a preparação para os futuros afundanços. Sem saltar ou fugir dos sentimentos, fortalecidos pela dor tornada alegria, e o desencanto alquimizado em estímulo, haverá mais cabimento para o perdão, a compaixão, a comunhão, a ternura, a serenidade, a paz e até a alegria.
Mas se o prolongamento excessivo da depressão é um risco, a restauração precipitada e prematura do ânimo também não é benéfica. Cada um terá o tempo ajustado de sentir a revitalização natural acontecer, sentindo-se amenizado e reforçado. E, contudo, remanescerão sempre nódoas que por mais que sejam lavadas, deixarão marcas que ficarão para uma próxima lavagem, num programa mais apropriado ou, quem, sabe, necessitem de ser lavadas à mão e secas ao Sol.

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Literatura portuguesa IV


Nesta quarta parte evocamos as influências das correntes humanistas europeias em Portugal. Em destaque, o papel de Sá de Miranda.

Texto e desenho Dina Cristo

A medilha velha caracteriza-se por redondilhas (versos curtos de cinco ou sete sílabas) e moldes peninsulares quatrocentistas (vilancete, cantiga) constituídos por um mote e respectiva glosa. Mas desde o séc.XIII praticava-se em Itália um novo estilo: outro tipo de verso e composição poética – de dez sílabas. Este verso decassílabo é mais longo, mais flexível – presta-se a um maior número de combinações e dá maior liberdade ao poeta; adapta-se a uma maior variedade de tons e temas; é uma poesia que tem possibilidade de ser individualizada.
Petrarca seleccionou algumas combinações de versos, construções estróficas já cultivadas pelos provençais: a canção, a composição em tercetos, em oitavas dão azo a largos desenvolvimentos de conteúdo, em contraste com o molde rígido dos géneros de quatrocentos. O soneto e a sextina – devido ao sistema obrigatório de rimas - estão mais próximos do formalismo da poesia medieval, obrigam a uma condensação do pensamento ainda comparável às impostas pelas composições com mote e glosa.
Além destas formas, os italianos assimilaram também géneros líricos (características das literaturas grega e latina): écloga – quadro geralmente dialogado de tipos populares, sobretudo pastoris; elegia – poema de tonalidade melancólica ou sentenciosa; ode – quer laudatória quer lírica; epístola – carta em verso; epigrama – composição curta de conteúdo geralmente satírico; epitalâmio – composição congratulatória.
A forma nova correspondia a um conceito diferente de poesia. O “poeta” quer ser mais do que um artífice do verso. Ele atribui-se o destino de revelar o mundo íntimo do amor e apontar o caminho por onde devem seguir os grandes do mundo. A poesia tem para os poetas humanistas uma função doutrinária e edificante. A poesia lírica, só por si, comporta além do amor, os assuntos mais diversos tais como elogios de heróis, conselhos epistolares sobre o bem público ou ensinamentos.
A influência italiana na lírica peninsular manifesta-se já na primeira metade do séc.XV.
Em Portugal a consagração do novo estilo deveu-se em grande parte a Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) que nunca repudiou a “medida velha” - reconheceu aliás o interesse das antigas formas de trovar.
Na primeira fase da sua carreira, ainda anterior à sua campanha pelo novo estilo, Sá de Miranda cultiva exclusivamente a poesia amorosa. Refere a contradição entre a razão e a inclinação amorosa. Os seus versos testemunham um espírito torturado e tenso, com melancolia, expressão condensada.
Na fase seguinte, em campanha pela introdução em Portugal das formas italianas, enriquece e varia consideravelmente o seu material literário. Por exemplo, nas éclogas exibe erudição, reconta histórias célebres da antiguidade e alude a lugares comuns clássicos. São mais variadas do que as de Bernardim Ribeiro, mas mais convencionais como expressão de estados psíquicos. Toca certos tópicos característicos da literatura renascentista como desdém pela vulgaridade, superioridade do culto das letras, necessidade de renovação pelo estudo dos modelos estrangeiros, exortação à composição de poemas heróicos de assunto português.
Singularidade
A parte mais original da obra poética de Sá de Miranda é a écloga “Basto” e as cartas onde o autor expõe o que pensa do mundo que o rodeia, fala do contraste entre a vida rural e a urbana e palaciana. Sá de Miranda combina o elogio da simplicidade rústica (tema característico da Antiguidade clássica) com a crítica social. Na sua origem está talvez um certo sentimento de liberdade pessoal. A personalidade tem direito a não se conformar com as novas correntes. Considerava-se que todo o Ser Humano que vivia no seio da civilização urbana alienou a liberdade. A humanidade apenas seria livre conformando-se com a mãe natureza.
Sá de Miranda condena a faina agrícola, tráfego marítimo, ofício das minas. Os temas gratos são a expansão ultramarina, a crítica da Corte como centro de governo, todo o sistema de exploração em proveito de um grupo dirigente; a corrupção da justiça. Contra estes males, Sá de Miranda vê o remédio num poder real justamente exercido, ao serviço do povo (idealização típica do Renascimento).
Estas últimas ideias exprimem-se num tom nostálgico, evoca costumes e reis antigos portugueses. Para ele - que conservou construções e vocábulos arcaicos como que acentuando o carácter arcaizante do seu pensamento - o mundo está em decadência.
Mas o arcaísmo, próprio da medida velha, combina-se com uma acentuada originalidade. Ele foge à expressão convencional, evita verbos de encher, reduz ao mínimo a parte formal para evidenciar o que é significativo, pelo que a sua expressão é bastante condensada. Prefere os termos concretos às generalidades, enquanto as imagens vêm do mundo familiar. As tendências fogem ao carácter que está na essência do classicismo; ele orienta-se por uma expressão engenhosa. Por isso, Sá de Miranda está na corrente que conduz ao barroco peninsular e torna-se um dos precursores do conceptismo seiscentista.
A eliminação das redundâncias, conjunções, multiplicação de exemplos singulares e metáforas explica-se por uma tensão dirigida às referências práticas, concretas e não ao jogo conceptista. Os mais belos sonetos de amor ou de angústia incompreendida deixam uma profunda impressão de autenticidade devido ao esforço na acumulação de encavalgamentos rítmicos, contrastes, hipérbato, verbos intransitivos, nas mudanças bruscas (saltos de tempo, de lugar, realidade exterior ou íntima, tom monologal ou dialogal).
Deve-se a Sá de Miranda, além dos primeiros versos na medida nova, “Estrangeiros”, a sua primeira comédia em prosa, onde as regras do classicismo estão presentes: acção concentra-se num troço de rua onde se desenrolam os interesses em conflito. Esta, tal como a comédia Vilhalpandos, dá expressão a um ideário humanista renascentista: crítica da escolástica, da remissão pecuniária dos pecados, exaltação da paz e das letras humanas clássicas.

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quarta-feira, 1 de abril de 2009

Gigantes humanos?



Texto Dina Cristo pintura Cristina Lourenço


Esta é uma das dez pinturas - e três esculturas - que vai estar patente ao público, a partir de amanhã até ao último dia de Abril (ao almoço e jantar, excepto às Terças e Quartas-Feiras), no restaurante “Adamastor”, na Foz do Arelho.
Trata-se de uma (a)mostra de uma colecção de Cristina Lourenço, artista e professora, radicada nas Caldas da Rainha, que há cerca de dez anos tem vindo a desenhar, pintar, esculpir e transformar os seus “gigantes” em peças de joalharia.
Para uns autênticos dinossáurios humanos, para outros simples anjos, estes seres com membros colossais são já uma marca da pintora - com “uma forte componente de expressividade… abstracção… e surrealismo”, disse ao "A & A", - pronta a ser decifrada.
A exposição, que é colectiva, conta ainda com onze obras de Maria Bairrão.

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