quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Individualismo


Hoje prefere chamar à sociedade actual hipermoderna. No ensaio de há vinte anos, este professor de filosofia já lhe diagnosticava os sinais da mudança. Nas vésperas do seu aniversário, vamos revê-los, através de um texto escrito em 1991.

Texto Dina Cristo


Numa primeira abordagem ao tema da obra – o individualismo contemporâneo – o autor caracteriza os conceitos fundamentais, presentes ao longo do livro. É o caso de hedonismo, o prazer como fim último da vida.
Gilles Lipovetsky mostra a diferença entre a sociedade moderna e pós-moderna. Na primeira crê-se no futuro, na ciência e na técnica, em nome do universal, da razão e da revolução. Na segunda, o importante é a realização pessoal imediata – “o que se quer é viver já, aqui e agora”; na informação é a expressão a todo o custo e a indiferença pelos conteúdos.
Na sociedade de consumo distingue duas fases: a primeira, correspondente a Hollywood, de consumo passivo, e a segunda – mais absorvida pela qualidade de vida – em que a paixão pela personalidade faz criar correntes ecologistas, criativas e revivalistas.
Lipovetsky define o narcisismo individual, um sobreinvestimento nas questões subjectivas, característica do individualismo total, e o narcisismo colectivo em que os indivíduos desejam encontrar-se com outros semelhantes, como no caso da vida associativa.
Por fim, uma ligeira caracterização da sociedade actual: o máximo de opções e o culto da libertação pessoal, a vontade de autonomia.
Sedução
Gilles Lipovetsky analisa as características da sedução e a sua influência na sociedade e na política.
Na sociedade é a cultura do “feeling”, do prazer e da realização de desejos – no neofeminismo a sexdução. Na política é a descentralização da democracia que humaniza a nação e aproxima o poder dos cidadãos; a autogestão em que cada indivíduo é considerado um sujeito político autónomo.
A sociedade, actualmente personalizada, deseja o contacto humano, é hostil ao anonimato e à linguagem estereotipada. É o predomínio da comunicação, da escolha livre, da diversidade e realização dos desejos em detrimento da coerção, da homogeneidade e austeridade.
Indiferença
Gilles Lipovetsky atribui à hipersolicitação a causa da indiferença pós-moderna; afirma que hoje os comportamentos coexistem sem se excluírem e lança a pergunta: “o que é que se mostra ainda capaz de espantar ou escandalizar?”
O autor apresenta como características desta indiferença a paixão pelo nada e pelo extermínio total (caso de Hiroxima), a apatia das massas, a descrença no esforço, na poupança e na consciência profissional.
A indiferença manifesta-se em diferentes domínios. A vida não tem finalidade nem sentido, “o futuro já não entusiasma ninguém”. Constata-se a dúvida perante o saber e a abstenção nas eleições. A moda, os tempos livres e a publicidade têm em comum a futilidade.
São indiferentes a solidão - o solipsismo – e a revolução, como o Maio de 68, considerada a primeira revolução do género pelo autor. O suicídio torna-se a patologia das massas: “(…) o indivíduo pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não se supunha a si próprio, a sós consigo. Aqui, o deserto já não tem começo nem fim”. Todos estes aspectos conduzem à alienação, ao tédio e à monotonia.
Vazio
O autor descreve em que domínio se manifesta o vazio e as suas consequências. Na política assiste-se a uma crise de confiança nos dirigentes, é o caso do Watergate e do terrorismo, daí a crescente despolitização e dessindicalização.
Enquanto isso aumenta o consumo de consciência, expresso através do yoga, da psicanálise, da expressão corporal e meditação transcendental. Há, também, uma grande necessidade de viver o presente, viver tudo imediatamente, por isso desaparecem as grandes iniciativas que merecem sacrifício ao longo da vida.
O fascínio pelo auto-conhecimento e auto-realização é uma das facetas do narcisismo. Esta era do “amor-próprio” caracteriza-se também pela libertação, autonomia e independência do eu. A necessidade permanente de valorização e de ser admirado está presente.
O corpo torna-se objecto de culto. É quase obrigatório continuar jovem e lutar contra o tempo. No que diz respeito à confraternização, ela faz-se numa base comum (o mesmo bairro, região ou sentimento) mas, embora haja autenticidade, os actos não são espontâneos, os indivíduos retraem-se e interiorizam-se.
O vazio, traduzido numa vida solitária, na incapacidade de sentir, revela-se como um mal-estar e uma vida absurda. Por detrás de uma aparência de carácter sociável está a exploração dos sentimentos do outro e a procura do interesse próprio. “As relações humanas são baseadas na dominação e intimidação”.
(Pós)modernismo
No período do modernismo há o culto da novidade e da mudança. Os principais valores são a imediatez, o impacto e a sensação. O hedonismo encoraja a gozar a vida, a obedecer aos impulsos. O culto do consumo uniformiza os comportamentos. Assim, predomina a homogeneidade, o ideológico e o universal.
A experiência pessoal torna-se, no modernismo, fonte de inspiração. A arte desliga-se do passado e torna-se mestra de si própria. Neste contexto, o indivíduo está propenso à angústia, ansiedade, stress e depressão.
O pós-modernismo consagra o novo, faz triunfar a anti-moral e o anti-institucionalismo. O natural, espontâneo e improvisado tornam-se os principais valores. Aumenta a reivindicação de liberdade na vida familiar, no vestuário e na comunicação.
No período pós-moderno predomina o desejo de ócio (de auto-realização e liberdade) em detrimento do trabalho, considerado monótono. O mesmo acontece com a imaginação em relação ao saber técnico. Dá-se a crise do Estado Providência.
Há, ainda, uma decadência estética: a arte torna-se híbrida, ao integrar todos os estilos, e esgota-se num arquétipo. Todos têm vontade de expressão artística, livre e aberta a qualquer indivíduo.
A coabitação dos contrários é uma realidade na sociedade pós-moderna: “(…) não há interesse pelos programas políticos, mas faz-se questão de existência de partidos; não se lêem jornais, mas defende-se a liberdade de expressão, quanto mais o diálogo se institucionaliza mais sós se sentem os indivíduos e quanto mais cresce o bem-estar, mais a depressão triunfa”.
Humor
Gilles Lipovetsky traça a evolução do cómico na sociedade. Até ao Renascimento o riso está ligado à profanação do sagrado e à violação das regras oficiais. O cómico medieval rebaixa e ridiculariza. A partir da idade clássica, o riso desenvolve formas modernas como o humor, a ironia e o sarcasmo.
Depois do séc.XVIII e até ao séc.XIX o riso livre é consideradobaixo de mau tom e como um comportamento a desprezar. Contudo, o sentido de humor difundido nestes dois séculos acentua o lado engraçado das coisas.
Ainda no séc.XIX e primeira parte do séc.XX, o outro era o alvo principal de humor. Hoje, ri-se muito menos dos vícios e defeitos dos outros e mais do próprio eu - é o caso de Woddy Allen. Actualmente rimo-nos mais com o outro e não do outro.
Hoje, o Homem tem cada vez mais dificuldade em sair de si e sentir entusiasmo. O riso e as gargalhadas espontâneas são cada vez menos. O tom humorístico é ligeiro; é feito de jogos de palavras e fórmulas indirectas. Contudo, hoje, ninguém é sedutor se não for simpático. O humor torna-se uma qualidade a exigir do outro.
Os valores da primeira metade do séc.XX, como a castidade, sacrifício, poupança, convidam mais ao sorriso do que ao respeito. Hoje em dia, as coisas mais sérias e formais assumem um tom cómico. A hipertrofia lúdica vai dissimulando a infelicidade quotidiana. O código humorístico veicula a linguagem das ruas, em tom familiar e despreocupado.
O humorístico introduziu-se as áreas mais diversas. A moda prima pelo desleixado e descontraído, “o novo deve parecer usado e o estudado espontâneo”, coexistem diversos estilos. Na arte vê-se de tudo e tudo é permitido. A publicidade explora os slogans mais descontraídos. Na tecnologia há já robôs que se destinam a rir e a fazer rir.
Violência
Durante milénios, a violência e a guerra foram valores dominantes. Numa época em que prevalecia o interesse do grupo, a crueldade estava legitimada: a violência tinha como objectivo o prestígio ou a vingança. Esta moral de honra podia mesmo levar à luta até à morte.
Com o advento do Estado, a guerra torna-se a missão honrosa do soberano, um meio de conquista e expansão. O excesso de represália deu origem a leis destinadas a moderá-la. Mais tarde, com a era individualista, desaparece a legitimidade de crueldade e retaliação. As sociedades tornam-se policiadas e a partir do séc.XVIII começam a diminuir os crimes.
No início do séc.XIX renuncia-se aos castigos corporais e, no séc.XX, diminuem o número de execuções, condenações à morte e violência privada. A vida torna-se, para o Homem individualista, o valor supremo e a sobrevivência a lei fundamental. Dá-se uma pacificação dos comportamentos, as discussões são cada vez menos.
Actualmente reina a indiferença: o outro passa a ser um estranho, um anónimo. Paradoxalmente, há cada vez maior sensibilidade à dor do outro e um desejo de comunicar e conhecê-lo.
Hoje, a violência de classe dá lugar a outra de jovens desqualificados, minorias raciais ou grupos periféricos – é o crime em pleno dia, por quase nada. Entre os mais jovens crescem as tentativas de suicídio, mas “o individuo pós-moderno tenta matar-se sem querer morrer (…)”.
Sedução, indiferença ou vazio são, pois, elementos da mesma realidade: o individualismo contemporâneo. Gilles Lipovetsky contrapõe à época moderna – da produção e revolução – a pós-moderna, da informação e expressão. Diz o autor que o narcisismo é a comunicação sem finalidade nem público, em que o destinador se torna o seu principal destinatário.

Etiquetas: , ,