quarta-feira, 18 de março de 2009

Perpétuo

Pelos 80 anos do Borda D´Água, revisitamos os almanaques. Uma história que se iniciou com a tipografia e perdura até hoje.


Texto Dina Cristo

Diz uma lenda judaica que o livro de todo o saber, gravado para a humanidade vindoura nas vésperas do dilúvio, era um almanaque. Sabe-se que existiu entre os povos antigos. Em Portugal, há manuscritos com matéria astrológica que remontam à primeira metade do séc. XIV, mas é com a imprensa que a sua divulgação se torna popular e anual.
Em 1496 é publicado o “Almanach Perpectuum”, de Abraão Zacuto, numa tipografia judaica, em Leiria. Este almanaque foi utilizado para a elaboração de tábuas solares náuticas dos Descobrimentos. Eram os repertórios dos tempos (o primeiro fora editado por Valentim Fernandes em 1518) também chamados lunários.
A folhinha de lua é uma publicação anual com calendário, informações científicas, tabelas, registo de aniversários e textos humorísticos ou recreativos. Entre os seus autores estavam astrólogos, matemáticos, médicos, professores e clérigos. Alguns tiveram o contributo de nomes como Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
Contendo muitos dados variados - «abrir um almanaque é correr-se o risco de saber um pouco de tudo (...)»
[1]- predominavam as informações de carácter meteorológico (o calendário, as efemérides), religioso (festas e feriados), astrológico (fases da lua), agrícola (cultivo da terra) e higiénico; informações úteis que facilitassem a vida quotidiana, como comer, sobreviver, cultivar a terra, governar-se, distrair-se, informar-se e discernir.
O repertório era o ponto de contacto da cultura popular com a escrita. O seu conteúdo transpunha para o papel parte da cultura de tradição oral e era uma forma de difusão de saberes para as classes pobres, adquiridos por via mais erudita. No século XVIII muitos começavam por “como vão ouvir”, reflexo de uma audição colectiva e popular.

Popularidade

Dirigido a um público mais rural, entre os séculos XVI e XVII, passa depois desta vida agrária para um meio urbano, nobre e burguês (a exigir informações burocráticas e administrativas precisas). No séc. XVIII houve títulos que procuraram atingir leitores urbanos, como o “Almanaque de Lisboa”, publicado pela Academia das Ciências da capital.
No séc. XIX explodem em quantidade (sobretudo a partir da segunda metade) e diversidade, passando a abarcar um maior leque de público e novas formas de o utilizar, como a familiar. Em 1873, publicaram-se, em Lisboa, 47 almanaques diferentes e, neste final de século, imprimiam-se, por ano, cerca de 16 mil folhinhas de algibeira.
Chegou mesmo a haver uma pequena livraria editora de almanaques na Rua Augusta. Os cegos eram os seus principais vendedores ambulantes – uma forma de venda que persistiu pelo menos entre o século XVIII e XIX. A feira da ladra foi outro local de venda, a que se juntaram depois outras feiras e romarias.
Com as facilidades de impressão, especializa-se, por um lado, ao mesmo tempo que se torna enciclopédico. Evolui de poucos saberes fundamentais para uma pulverização de conhecimentos e surge o almanaque político, diplomático, regional, literário (que se impôs e distraiu alguns serões), teatral, fadista, tauromáquico, familiar, feminino, recreativo e escolar.
Dão-se no séc. XIX as alterações mais profundas. Começam a integrar anúncios e transformam-se num subsidiário da imprensa: jornais e revistas recorrem a ele como forma de brindar o público. Depois, perante um ritmo que se torna inadequado à vida citadina, vai esmorecendo, mas sobrevive, até ao século XXI, o almanaque rural, com as luas e indicações agrícolas.

RADICH, Maria Carlos - Almanaque - tempos e saberes, Centelha, s/d, pág.65

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