Texto Dina Cristo
A dramatização da informação em detrimento da análise e da ponderação, a concorrência desenfreada que não serve a verdade, a imagem de um canal, assumida cada vez menos pelo ordenamento das notícias e mais pelo apresentador que adquire, progressivamente, o estatuto de actor e criador de acontecimentos – eis, em síntese, algumas das características da TV informativa dos nossos dias que “Broadcast News” foca.
Com um mercado cada vez mais competitivo, a informação fica reduzida ao estatuto de mera mercadoria. Os jornalistas de televisão, aos poucos, vão abandonando a sua “velha” missão de informar e tornam-se autênticos vendedores do “novo” espectáculo. “Quando sentires que estás a ler, pára e começa a vender um pouco”, aconselhava Tom.
Gradualmente, a mensagem com conteúdo, a informação reflectida, o debate de ideias vão sendo menosprezados e mesmo estes últimos, quando se realizam, pretendem sobretudo explorar o conflito entre os participantes.
Neste contexto, o jornalista torna-se a principal figura daquela “companhia”: é a vedeta. Resultado da valorização do seu ‘papel’, este atributo dá-lhe um prestígio que o torna figura pública nacional (Tom é admirado ao passo que Aaron nem sequer é recordado). Os agentes de informação passam, também eles, a ser vendidos. “No mercado de comunicação os jornalistas compram-se e vendem-se, vulgarmente, como qualquer programa ou concurso”[1].
A partir do momento em que assinou um pacto de lealdade com o lucro, a informação televisiva tornou-se infiel ao conceito tradicional de notícia e passou a coabitar com as modernas noções de entretenimento e espectáculo. Máquina pesada e dependente de meios financeiros para continuar a emitir, de tudo faz para “colar” os telespectadores ao ecrã. “Posso ligar para as notícias?”, pergunta Aaron a propósito do trabalho de Tom sobre violações; a redacção em peso protesta e, numa irónica resignação, ele aceita: “Está bem. Sexo e lágrimas devem ser as notícias”.
Uma das fórmulas que mais atrai a atenção é a espectacularidade. Assuntos dramáticos, violentos e chocantes são acentuados com imagens em grande plano, ou até em plano de pormenor, numa exploração quase mórbida do sofrimento e da desgraça. O conteúdo essencial de uma questão é frequentemente secundarizado a favor de um pormenor mais apelativo, não importa que seja um facto isolado, superficial e até, por vezes, um ângulo de abordagem especulativo se é este que traz mais audiência.
Além de em “Broadcast News”, está questão é abordada numa já vasta filmografia da qual fazem parte “Wrong is wrisht” de Richard Brooks, um dos realizadores que se dedica aos “newspaper films”. “Aqui estamos em pleno domínio da informação como espectáculo, através dos meios audiovisuais. O facto de ter uma câmara e dar notoriedade a quem capta, abre as portas ao repórter Sean Connery por todo o lado. Mas esse espectáculo tem um preço; é a diluição de verdade e da informação na encenação feita pelas estações televisivas. A “verdade” é, aqui, apenas o facto de “estar” no ecrã”[2].
Encenação dos factos
Por norma, a televisão, nomeadamente no ramo informativo, é considerada um modelo de autenticidade. O telespectador comum, acredita que a TV mostra a verdade, que os eventos só acontecem se forem transmitidos na televisão e tudo o que o aparelho não mostra é porque não é importante ou não existe. Os protagonistas dos acontecimentos, por seu lado, admitem que um facto só é reconhecido se for visto na televisão e que, por conseguinte, a sua não transmissão faz dele um não acontecimento[3].
O jornalismo televisivo pretende transmitir da realidade uma imagem tão fiel quanto possível; tem como objectivo a objectividade. Mas será que o consegue?
Sendo a imagem “tudo o que pode acrescentar à coisa representada a sua representação”[4], implica que à verdade (ou mentira) da coisa representada acresce a veracidade ou não da representação que dela se dá.
O jornalismo televisivo tem por dever representar, isto é, tornar presente no tempo e no espaço coisas, pessoas e factos que existem, vivem e acontecem na verdade, isto é, que têm existência própria no dia-a-dia. Deverá igualmente representá-los o mais próximo possível do modo como são vistos durante a sua existência quotidiana. Mas atingirá esse fim?
Nem sempre. Por vezes as regras não se cumprem e violam-se princípios fundamentais, tais como o amor à verdade. Há factores como a reconstituição, a manipulação e a encenação, que distorcem os acontecimentos. O resultado é uma imagem, umas vezes próxima, outras um pouco “desfocada”, mas raramente integral (à parte a totalidade da realidade pois, por enquanto, é impossível o relevo, a textura e o cheiro).
Para além das questões de espaço e de tempo, que limitam a exposição do acontecimento em toda a sua dimensão, é humanamente difícil a sua compreensão total e praticamente impossível (nomeadamente para um jornalista não especializado) o conhecimento, na íntegra, das causas, próximas e remotas, do facto, dos diversos pontos de vista sobre o mesmo, das suas implicações e de todas as suas vertentes de abordagem: económica, política, social, religiosa, etc.
Além destas questões de conteúdo, as notícias levam uma roupagem nova; são encenadas, montadas e ei-las prontas para a sua apresentação ao grande público, agora mais “interessantes” e prestes a fazer furor dada a sua espectacularidade. “(…) caso ela seja demasiado banal ou inexistente, porque não maquilhá-la, condimentá-la? Chama-se a isto falcatruar”[5]. Será desejável bom senso q.b. para evitar excessos e gerar verdadeiras obras de ficção, como esta: “(…) um dos condutores do carro alugado pela AMI contou-me que tinha trabalhado para uma equipa de televisão estrangeira e que, ele próprio, dera aos refugiados o dinheiro oferecido pelos jornalistas aos que aceitaram rastejar, esgravatar e lutar por água e arroz, de modo a serem filmados”[6].
Há situações mais cometidas, mas nem por isso mais escrupulosas. Alain Woodrow conta no seu livro uma situação em que se inverteu, por completo, o sentido das imagens. Tratava-se de uma mulher que limpava uma prateleira, por isso vazia, e reclamava com o operador de câmara por filmar aquela, quando as outras estavam cheias; o resultado foi uma interpretação maliciosa que a colocava em pranto por falta de alimentos. Sorj Chalandon, citado por Alain Woodrow, refere mais dois exemplos:
“Noutra ocasião, uma televisão paga a um gasolineiro egípcio de Amã para que se vista como um kuwaitiano. Impecavelmente de branco, soberbo, o homem introduz a mangueira no depósito de um carro, com ar preocupado. Bela sequência sobre esses emires que vendiam petróleo ao mundo inteiro, obrigados doravante a trabalhar como gasolineiros na capital jordana. Uma outra equipa, ainda invade o aeroporto internacional, que abriga milhares de refugiados, põe comida em cima de um cobertor e filma os pobres esfomeados a comer assim. ‘Que imagem do nosso país estão vocês a dar ao estrangeiro?’, interroga o jornalista jordano. ‘Um bando de desgraçados famintos ou psicopatas, sedentos de sangue e a uivar ‘Saddam’ todo o santo dia!”[7].
Tal como os “newspaper films” nos sugerem, muitas vezes são os chefes de redacção que incentivam os jornalistas a atropelar as regras deontológicas. José Barata Feyo fala da sua experiência: «Em relação à guerra do Golfo pude observar, no que respeita às redacções-centrais: “Não quero nem saber se tens alguma notícia para dar. Entras em directo e é tudo”. E o enviado lá entrava com a sua primeira mentirazinha, no início timidamente, depois já à vontade, com muitas de cada vez, seguro de si e das felicitações do chefe»[8].
Estes são apenas exemplos de distorção involuntária da imagem da realidade social provocada pela própria organização das empresas de comunicação. De qualquer forma, existem situações cujo contexto foi totalmente alterado, em que o significado final era inconciliável com o sentido original da imagem.
São eventos reconstruídos e contrafeitos, acontecimentos encenados para a câmara, personagens maquilhados, comportamentos que se alteram sempre que se acende a luz da objectiva, manifestações que se retardam à espera da chegada da televisão, planos de corte ‘dribando’ a fé do espectador, jornalistas que vestem a pele de vendedor, imagens de um facto que servem para ilustrar outro diferente. Não contribui tudo isto para aproximar o jornalismo a, pelo menos, uma certa ficção?
Valérie Ganne dá a resposta: “(…) o magazine, os documentários são encenados e adoptam um estilo narrativo próximo da ficção”[9]. Esta fonte sublinha ainda a não veracidade das imagens em relação ao facto a que o jornalista se reporta: “Certos jornalistas podem portanto utilizar imagens anteriores aos acontecimentos; imagens da guerra Irão-Iraque para ilustrar a guerra do Golfo, imagens de uma manifestação de funcionários em Toulouse em Março para ilustrar uma manifestação em Agosto, enfim imagens de Teerão enquanto se fala de uma manifestação em Alger (…)”[10].
Adolfo Vidal sintetiza a problemática televisiva da indistinção entre o real e a sua representação: “Afinal é como ficção que podemos caracterizar o televisivo discurso informativo da actualidade que, produzindo industrialmente e em série, nos convence que a fragmentação é unidade, que o artificial é natural, que a encenação é espontaneidade e que a tecnologia é objectiva”[11].
Durante a guerra do Golfo mentiu-se objectivamente, dizem alguns críticos. A famosa gaivota cheia de crude – um atentado ambientalista supostamente provocado pelas hostes de Saddam Hussein, afinal “(…) eram imagens de arquivo, e referiam-se a outras tragédias ecológicas que não a do Golfo. A cobertura da guerra chegou ao ficcional”[12].
Artur Queirós, jornalista que presenciou o “day-after”, afirmou em entrevista que “eram colmeias humanas completamente destruídas, eram só estragos e os meios de comunicação falavam apenas em bombardeamentos cirúrgicos”; o mesmo profissional advoga que os “media” tiveram, em relação ao Iraque, no máximo cinco por cento de credibilidade: “só se disseram mentiras”[13].
A revista “Positif” publicou artigos onde se afirmava que o que aconteceu foi uma “ficcionalização da realidade”, ou seja, mostravam-se bombas a cair, mas nada em concreto, nada que se comparasse à realidade dos documentários exibidos durante a Grande Guerra, nomeadamente o bombardeamento de Londres: «(…) foi o “falso directo” da guerra, ou seja, a guerra não mostrada, apenas insinuada»[14].
A primeira vítima da guerra foi a verdade, transmitiu-se ficção com o rótulo de reportagem. Barata Feyo, no prefácio do livro de Alain Woodrow sobre informação e manipulação, afirma: “Em nome e pela causa sacrossanta do princípio da concorrência, empolaram-se factos, inventaram-se situações, manipularam-se povos inteiros, mentiu-se deliberadamente. Fizemos o contrário do que a informação manda que se faça”[15].
Recorrendo a truncagens, enfeites ou habilidades, o facto é que se reconstrói, para empolamento dos aspectos insólitos, o material representado, “creating a second-hand reality”[16].
É essa construção da realidade que se analisa no próximo artigo. Uma construção onde, como veremos, o modo como está organizada a actividade produtiva de notícias é determinante