Filhos da estrada
Depois da comemoração, ontem, do Dia Nacional do Povo Cigano, relembramos as suas antigas tradições num artigo escrito há mais de vinte anos, com base em “O povo cigano”, de Olímpio Nunes.
Texto e fotografia Dina Cristo
Texto e fotografia Dina Cristo
Muitas pessoas desejam hoje paz, amor, liberdade. No entanto ficam apenas pelos sonhos. Os ciganos, com uma personalidade única, vão muito mais longe. Ultrapassando todos os obstáculos vivem uma vida repleta dos ideais do povo civilizado, reflectidos nas coisas mais simples. São filhos do sol e do vento.
Os ciganos faziam parte de um povo multiforme criador e herdeiro de culturas antigas como a mohenjo-dora. Estas sofrem uma regressão com as invasões arianas, ressurgindo a concepção religiosa primitiva e a devoção mística a par dos mais díspares ritualismos.
Com um género de vida já semi-nómada iniciaram assim o seu peregrinar por volta do século X. Deixam o noroeste da Índia, atravessam o vale do Danúbio - onde estacionam longo tempo, assimilando muitos costumes húngaros – a Pérsia, Arménia, Península Balcânica, onde se qualificam nas artes dos metais.
No século XV, com a invasão turca, retomam a marcha para a Europa Ocidental, de onde se deslocam para todo o mundo em inúmeros e pequenos núcleos.
Aquando da sua chegada, muitas designações lhes foram atribuídas, baseadas desde a sua cor às regiões de maior permanência. São três os principais grupos: Rom, mais tradicionais, com subgrupos de várias profissões, Sinti, devido à sua longa estada em França, e Gitanos, estabelecidos na Península Ibérica.
Nas primeiras décadas de estadia, foram vítimas de expulsões e repressões, chegando mesmo a morrer, atingindo o auge com os nazis.
É perante esta sociedade, então desconhecida, que sofrem um enquistamento. Ignoravam as línguas e eram importunados por outra mentalidade cheia de curiosidade, começando aqui o temor e ao mesmo tempo desdém ao estranho.
Entretanto, à medida que se distanciam no tempo e no espaço do seu berço territorial, vão-se afirmando cada vez mais como ciganos, pois que vão dando respostas muito próprias às necessidades surgidas. É por esta razão que apresentam ainda hoje características antropológicas e socias peculiares que os distinguem dos meios humanos onde vivem, mantendo uma genuinidade étnica.
Cultura
A área cultural está na sua própria etnia, nos seus elementos comuns que lhe dão unidade e a preservam. Embora sendo uma raça única é diversificada devido à permanência mais duradoura em determinadas regiões.
Esta é uma cultura ágrafa, que foi perpetuada pela tradição oral. A sua língua original é o Romani. Pertence às indo-europeias, com grande parte do vocabulário indo-ariano. No entanto, com o seu peregrinar, são influenciados por vocábulos dos vários países (alguns dominam diversas línguas) pelo que surgem vários dialectos.
Como povo nómada que é, liberta-se de todo o complexo burocrático e artificial da nossa civilização, levando-o a algum imobilismo cultural. Embora tivessem transformado algumas formas externas – pela sua utilidade imediata e necessária – muito pouca a sua forma interna foi seduzida pelo ambiente social externo. São idênticos a ciganos de séculos anteriores, incompatibilizando-se com as leis das sociedades modernas que os rejeitaram, tornando-os definitivamente (como) marginais.
Povo
O povo cigano só é plenamente feliz perante um cenário natural, tirando proveito da sua liberdade. Reflecte-se na tranquilidade dos campos, na fogueira sobre a relva à sombra das árvores, na largueza dos vales, na grandeza das montanhas, no ilimitado do céu, no brilho das estrelas, no esplendor repleto no contraste entre o luar e o sol.
Foi pelo amor à liberdade que se tornaram nómadas, fugindo aos que os pretendiam escravizar. Assim caminham à rédea solta durante séculos, dando-lhes esse permanente vaguear pelas zonas mais distantes e diversas do globo uma enorme alegria e paz de espírito. A terra não tem para si fronteiras; a sua pátria é o mundo.
Preferem passar as situações mais humilhantes a deixar a viagem. O caminho está no seu próprio sangue, faz parte da sua natureza. São filhos da estrada, mudando constantemente de horizontes.
Nas suas deslocações em campanhas estabelecem uma perfeita comunhão entre si e quando encontram outros ciganos confraternizam-se. Encontram o mesmo contexto, passado, no fundo revem-se a si próprios, conscientes de um valor exclusivo.
Para transporte utilizam desde cavalos, carroças a bons automóveis e roulottes, dependendo da condição financeira. De acordo com o seu carácter aproveitam também abrigos naturais como pontes e cavernas. Preferem a floresta como local de estacionamento. Aqui, encontram lenha para a fogueira, pasta para os muares e possibilidades de caçar. À frente da tenda a fogueira, ao lado os animais.
Devido às condições climáticas durante o Inverno fixam-se temporariamente, esperando impacientemente o retomar, uma vez que para o cigano permanecer muito tempo em qualquer parte é anormal: “cavalo parado muito tempo… formigas nas patas”, dizem.
É num ambiente humano de solidariedade e coesão do grupo, com intensa afectividade e em espaço reduzido, que o cigano encontra o refúgio das agressões sociais.
Essa sociedade onde tem como “recompensa” do apego às tradições – na negação à inovação externa – a pobreza, o analfabetismo, a miséria. No entanto, mesmo perseguidos, menosprezados e humilhados confessam não querer mudar de vida.
Não têm a noção do tempo. O importante é a vida presente, pois que o passado não importa e o futuro é incerto. Normalmente não se orientam por relógios ou calendários, mas através de fenómenos naturais como o relinchar do cavalo indicando a aurora. Muitas vezes não sabem a sua idade e desconhecem a dos seus filhos. Estes são novos ou velhos, o resto não tem importância.
São versáteis ao longo da vida e têm um alto grau de inteligência. São simples, dão valor às pequenas coisas, não têm ambições de bens materiais – o que importa é sentirem-se bem e serem felizes.
O casamento não funda a família. É apenas um rito de passagem do estado de adolescente para adulto. A boda prolonga-se durante uma semana. A rapariga fica dependente da sogra e o rapaz do pai, sendo este o chefe da família com toda a autoridade sob o lar. O jovem casal só é dignificado a partir do nascimento do seu filho, que normalmente recebe o nome do avô paterno.
A criança enquanto não é baptizada é considerada impura. Os filhos não têm berço e depois andam semi-nus. Muito cedo se tornam úteis e são obrigados a mendigar pelo aperto da fome, tornando-se importantes elementos na economia doméstica.
Costumes
Desconfiados e muito prudentes para com o desconhecido (gadjé), raramente lhe dizem a verdade. Aliás, a mentira aliada à sua língua constituem as suas armas.
Como recurso a necessidades vitais pratica o roubo, essencialmente de alimentos e roupa. Acredita que se a Mãe-Natureza é pródiga tudo é de todos e aqueles que têm bens suficientes podem dispensar aos necessitados. A prática é normalmente longe do local onde estão estabelecidos, após uma experiência para recolha de informações preciosas.
Em alternativa à insegurança da vida que praticam tornam-se mendigos, em especial mulheres e crianças. Para provocar a piedade nos passantes inventam manhas e mentiras. Também comum e[ra] o contrabando e a passagem de notas falsas. Entretanto, para esquecer a fome tomam o gosto pelo cigarro desde a infância, evidando todos os esforços para o obter. Adoram fumar cachimbo. A bebida é presença assídua em festas e bodas e é muito comum a ingestão em excesso. Só após a boca molhada exteriorizam os seus estados íntimos.
O cigano cumpre integralmente as normas: respeito aos seus e aos velhos, amor extremo aos filhos e fidelidade conjugal. Para julgar conflitos ou problemas recorre à kris – assembleia de conhecedores das normas de tradição - muito temida.
Crenças
Os ciganos adoptaram um comportamento religioso repleto de superstições e mitologias, perfeitamente integrados nos seus valores familiares, económicos e culturais.
Acreditam numa realidade extra-terrena - entre a qual distinguem o mundo dos mortos, entidades com vida e poderes específicos - para os ciganos tão verdadeira como objectos materiais. Têm assim uma visão de continuidade entre os dois tipos de existência.
O seu Deus chama-se Del, do qual tudo depende, razão pela qual está sempre presente na sua mente. Não têm, contudo, uma religião própria, adoptando regra geral a dos países em que permaneceram mais tempo. São dados à bruxaria, da qual tiram proveito, utilizando frases feitas para ganhar umas moedas. Lançam pragas, maus-olhares, provocado pelo ódio ou inveja. Praticam a adivinhação, eficaz com mulheres grávidas e velhas. Só a mulher tem estes dons, pelo que é sua actividade ler a sina. Acreditam em poderes ocultos, especiais em certos indivíduos, na telepatia e no poder místico do fogo e da água (esta é considerada com mais virtualidades).
Têm uma grande diversidade de ritos e crenças em relação à doença e à morte, onde colocam grande carga afectiva. Em relação à enfermidade são-lhe dadas explicações sobrenaturais; assim, é causada pela introdução de um espírito mau no doente que, nos casos graves, terá de chamar uma curandeira para o expulsar. Há uma mistura da religião cristã, magia e superstições nas “mezinhas” aplicadas tal como nas palavras rituais dos feitiços.
Quanto ao falecimento há uma ambiguidade: homenageiam a alma crendo na sua imortalidade e no seu espírito protector (butyakenga) e têm temor pelos seus malefícios (muló). Acreditam que o morto faz uma peregrinação dolorosa, atravessando montanhas e desertos de ventos gelados e combatendo monstros - é o carácter imortal da alma.
O defunto deixa na terra parte do seu espírito que habitará um descendente, protegendo a restante família. No entanto, o muló – também ele ambulante – pode atormentá-los e pretender ter relações amorosas com mulheres viúvas durante a noite, pelo que é vigiado. Para evitar, satisfazem-no visitando os túmulos, colocando flores e/ou queimando velas.
O velório é acompanhado de pranto, gritos, lágrimas, ruidosas lamentações, para alívio. O luto é condição para praticamente todos os parentes e se é próximo durante quinze dias os familiares não se lavam ou comem alimentos quentes, evitam ainda carne, álcool, músicas e participações em divertimentos. Após o seu enterro é “esquecido” e proibido pronunciar o seu nome ou lamentar pois ele teria desejos de voltar à terra para os consolar. Os seus objectos são queimados pois crêem que o seu espírito vive sobre as coisas de seu uso.
Para auxílio do defunto nas dificuldades que irá encontrar e para protecção da família fazem ritos funerários, mas só após a sua decomposição, altura em que a alma é libertada. Antes estava somente dormitando, razão pela qual lançavam, juntamente com o cadáver, comida e objectos pessoais.
O rito mais importante é o “pomanal”, cerimónia após ano e meio sobre a sua morte, onde se marca o fim do luto. É feita uma encenação, na qual um membro da família com idade próxima o imita em tudo, fazendo-o reviver. Após o banquete lançam-se os restos da comida no rio para demonstrar que a sua lembrança foi apagada.
Todos os ritos visam o bem-estar do morto, pois acreditam que o comportamento dos vivos tem uma influência directa no mundo dos defuntos. Este reúne todas as condições para intervir na existência dos demais e castigá-los.
Laborar para o cigano significa vender; também com uma visão de lazer vai praticando actividades marginais ligadas à vida nómada, livres de horários rígidos e patrões. Só trabalham por extrema necessidade ou para distracção do ócio.
Há uma divisão sexual do trabalho. O homem ocupa-se da actividade produtiva: trabalha o metal (estanhador, caldeireiro, ourives, latoeiro, cutileiro, ferrador), é amestrador (de ursos, macacos), malabarista, acrobata, veterinário, contrabandista, músico e fabricante de instrumentos de cordas, a sua predilecção. Também caçam e pescam, fazem a tosquia de bestas, mas são essencialmente vendedores ambulantes (bufarinheiros) de tecidos e gado (muares, burros, cavalos). Para além do negócio, o cavalo serve para montar, embora não o faça com frequência, e para transporte. É o seu companheiro inseparável e é tratado como um membro da família. O cigano é hábil no tratamento de qualquer animal e perito em fazer passar por bons ginetes.
É a mulher que cuida da alimentação (procura, rouba ou compra) e prepara as refeições - uma por dia, embora comam diversos acepipes. O seu prato preferido é ouriços-cacheiros. A alimentação é muito variada com predominância da carne. Apreciam muito a cebola e a bebida habitual é água. Não têm qualquer repugnância em se alimentar de animais mortos por doença. Os pobres costumam comer com os dedos, esfregando-os no cabelo para brilharem. Nunca deixam restos pois é sinal de desgraça para o próximo dia.
Arte e fisionomia
A sua alegria oculta explode nas festividades. Nestas manifestações ciganas, a música, dança e canto são elementos indispensáveis. Expressam os seus sentimentos quotidianos, reflexo da sua maneira de viver.
Devido à dificuldade de compreensão do canto, as formas mais receptivas foram a música. É sobretudo instrumental na Hungria, vocal na Rússia e dança em Espanha, onde alcança êxito internacional. Da sua cultura musical ficam orquestras célebres na Europa, os países de Leste mantêm tradições no canto, na Rússia são representadas peças em romani. Liszt foi o grande divulgador. Alguns músicos ficam nomes consagrados como Paco de Lucia, guitarrista de Paris. Também muitos temas do seu folclore inspiram compositores e fazem vibrar aficionados.
A sua música é repassada de nostalgia, assente numa espécie de mágica transmitida, própria da sua alma. Deram expressão única à música flamenga que embora tenha influência Andaluzia é muito genuína, com uma variedade rítmica em constantes ornamentações de melodia. Prestam além dos espectáculos, lições.
Em Portugal, são cerca de 50 mil, que se dedicam ao comércio ambulante de tecidos e também gado. Chegaram cerca do século XV, ao Alentejo, zona do seu agrado, provenientes da Estremadura castelhana.
Geralmente magros e esbeltos; contudo, as mulheres de meia-idade tornam-se muito fortes. São morenos, cabelo ruivo – quase sempre cumprido, mesmo em certos homens – rosto cumprido, dentes muito brancos. Olhos escuros, de olhar inquieto que vê e prevê; andar irregular, corpo muito direito. São muito resistentes e parece que falam com as mãos, de tantos gestos que fazem.
A mulher é coquete; usa fatos garridos, gosta muito de argolas, colares, botas ou chinelos. Cobre as pernas e despreza o busto. O homem usa normalmente patilhas, fatos esfarrapados. O seu traje tradicional era a jaqueta com alamares, calças apertadas e chapéu de abas largas.
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