quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Fitas jornalísticas

Quinze anos após o cicloJornalismo e cinema”, organizado pelo Expresso e Cinemateca Portuguesa, lembramos os filmes em que a estrela foi o jornalista. Eis a lista pela ordem de exibição no Museu do Cinema.

Listagem Dina Cristo

Hero (1992) de Stephen Frears
They won`t forget (1937) de Mervyn Le Roy
Cronaca familiare (1962) de Valerio Zurlini
Platinum blonde (1931) de Frank Capra
Gentleman`s agreement (1947) de Elia Kazan
Je plaide non coupable (1955) de Edmond T. Greville
It happened tomorrow (1943) de René Clair
Shock corridor (1962) de Samuel Fuller
Black like me (1964) de Carl Lerner
Each dawn I die (1939) de William Keighley
The story of G.I. Joe (1945) de William Wellman
Arise my love (1940) de Mitchell Leisen
The whole town`s talking (1935) de John Ford
Un linceul n´a pas de ponches (1973) de Jean-Pierre Mocky
The killing fields (1984) de Roland Joffe
Tinikling (1989) de Samuel Fuller
Salvador (1986) de Oliver Stone
A dispatch from Reuter`s (1940) de William Dieterie
All the king`s men (1949) de Robert Rossen
The fountainhead (1949) de King Vidor
While the city sleeps (1956) de Fritz Lang
Deadline USA (1952) de Richard Brooks
Park row (1952) de Samuel Fuller
Citizen Kane (1941) de Orson Welles
The lawless (1950) de Joseph Losey
Sbatti il mostro in prima pagina (1972) de Marco Belocchio
Defense of the realm (1985) de David Drury
The parallax view (1974) de Alan J. Pakula
All the president`s men (1976) de Alan J. Pakula
The man who shot Liberty Valance (1962) de John Ford
Magic town (1974) de William Wellman
Call northside 777 (1948) de Henry Hathaway
The big carnival (1951) de Billy Wilder
Die Verlorene ehre der Katharina Blum (1975) de Volker Schlondorff
Beyond a reasonable doubt (1957) de Fritz Lang
Five star final (1931) de Mervin Le Roy
The Keeper of the flame (1942) de George Cukor
The power of the press (1928) de Frank Capra
Absence of malice (1981) de Seydney Pollack
The ploughman`s lunch (1984) de Richard Eyre
The front page (1931) de Lewis Milestone
His girl Friday (1940) de Howard Hawks
The fronte page (1974) de Billy Wilder
Switching channels (1988) de Ted Kotcheff
Tout va bien (1972) de Jean-Luc Godard
Newsfront (1978) de Philip Noyce
Wrong is right (1982) de Richard Brooks
Broadcast News (1987) de James L. Brooks
The thin blue line (1988) de Errol Morris

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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Economia ou humanidade?



Quem recusa enriquecer uma comunidade com a sua específica maneira de ser, de estar ou de fazer? Globalização: uns estão a favor, outros nem tanto. Vamos espreitar um pouco o Fórum Mundial Social a decorrer neste planeta. Sábado é Dia de Acção Global, também em Portugal.

Texto Dina Cristo fotografia Victor Hugo Cristo

Na mesma altura em que na Suiça se reúne o Fórum Económico Mundial (FEM) por todo o mundo se comemora a oitava edição do Fórum Social Mundial (FSM). De um lado os países do Norte, materialmente mais ricos, a economia, o mercado, os lucros, do outro, os países do Sul, materialmente mais pobres, a sociedade civil, a ética, a humanidade. Será que podemos dividir, com tanta simplicidade, os que estão a favor e os que estão contra a globalização?
A "aldeia global" é um processo de unificação, integração, livre e voluntário, com vista à construção de um mundo a várias vozes, rostos e cores. Um só globo, com toda a diversidade, natural, humana, cultural, política, religiosa, social, que decorre da elevação da consciência humana. Na verdade, já estamos a ser "processados" e é natural, como escreve José Manuel Anacleto, que até mesmo os manifestantes anti-globalização ouçam música inglesa, vejam filmes americanos, telenovelas brasileiras, utilizem aparelhagens japonesas, calcem sapatos italianos, usem perfumes franceses, conduzam carros alemães, entrancem os cabelos de forma africana, se colorem com roupas orientais.
A globalização nada mais é do que a pertença a um todo maior, como antes representava a Nação em relação aos conflitos regionais. A oposição a ela é, na verdade, mais uma resistência à integração forçada, imposta - e que elimina identidades, oblitera património cultural, história, artes, letras, tradições e imaginários tradicionais - do que à pureza da sua formulação teórica. Afinal, quem não quer pertencer a um colectivo maior, preservando a sua peculiaridade?
FSM
Nasceu há sete anos, no Brasil. Começou por juntar 20 mil pessoas à volta do lema “Um outro mundo é possível”. Pretendeu ser uma alternativa, em alguns casos mesmo uma oposição, ao Fórum Económico Mundial, que ocorre no primeiro mês de cada ano, em Davos, na Suiça. Ao contrário deste, é organizado pelas ONG e movimentos sociais.
Depois dos primeiros três anos (de 2001 a 2003) sedeado em Porto Alegre, realizou-se em 2004 na Índia, em 2006 teve dois centros, um em África (Mali) e outro na América Latina (Venezuela) e em 2007 voltou ao continente africano, mais propriamente ao Quénia. O próximo encontro mundial de povos será daqui a um ano, também no Brasil.
O quarto realizado no Brasil foi em 2005, quando foi subscrito o Consenso de Porto Alegre, com doze propostas (assinado entre outros pelos portugueses José Saramago e Boaventura de Sousa Santos) entre as quais a promoção da economia solidária e da autonomia dos “media” alternativos. Nesse ano, o Fórum Social Mundial reuniu mais de 150 mil participantes, entre os quais cerca de 2500 relacionados com a economia solidária e quase 2800 voluntários; houve cerca de uma centena de espectáculos, filmes e exposições.
Dia global
A proposta deste ano é de uma Semana - de Mobilização Global - com a participação de múltiplos agentes sociais cuja acção culminará este Sábado, num Dia de Acção Global. O objectivo, a essência do FSM, é celebrar a diversidade e procurar alternativas sociais para os problemas do mundo.
Os eventos serão acompanhados numa comunhão de esforços mediáticos da imprensa alternativa através da Ciranda Internacional da Informação Independente, organismo criado no primeiro FSM, em 2001, cujo objectivo é compartilhar informação multimédia, através de plataformas livres que permitam uma comunicação horizontal.
Fruto do II FSM, o Observatório Global de “Media” (criado em Porto Alegre e formalizado um ano depois em França), pela mão do jornal “Le Monde Diplomatique” e da Agência Internacional de Imprensa, IPS, tem como finalidade a constituição de um quinto poder e a promoção do direito de qualquer cidadão deste mundo a ser bem informado. Tenta reunir jornalistas, consumidores e académicos a fim de denunciar o poder dos grandes meios de informação e identificar incumprimentos em relação à imparcialidade e ao rigor.

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quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Imprensa caricata

Perto do Dia Internacional do Riso, esta Sexta-Feira, publicamos um ensaio sobre caricatura. Mais profundo do que simples humor, irreverência, ridicularização ou vanguarda artística, eis um género jornalístico que, para além de altamente informativo, promove a reflexão.

Texto e imagem José Oliveira

O que é caricatura? “Na tradição francófona, significa todo o desenho de imprensa com algum cunho irreverente, definição hoje substituída pelo termo cartoon, imposto pelo imperialismo anglo-saxónico. O vocábulo caricatura vem de caricare – exagerar, em italiano. Em sentido mais restrito, caricatura significa retrato exagerado (retrato-charge) ou retrato burlesco de situação.

A pré-história

Eu arriscaria dizer que a caricatura nasceu com o homem. Por alguma razão um dos ícones mais conhecidos da história da humanidade é Adão e Eva representados com uma folha de árvore a tapar-lhes o... o motor da vida. Porque é ridículo tapar-lhes a zona púbica. Embora presentemente a irreverência seja... destapá-lo, por exemplo mostrando o rabo ao ministro; (a caricatura é uma irreverência). É que irreverência é o rompimento com o status quo; num mundo de nus, seria atrevimento tapar o corpo, tanto quanto é atrevimento destapá-lo numa sociedade de gente vestida (de preferência de gente “bem” vestida; o crocodilo da Lacoste, por exemplo, é uma caricatura do criador da marca. Anote-se, como curiosidade).

Aliás, a contraposição do homem desnudo ao homem vestido é relatada desde há muito num verdadeiro paradigma do humor; todos conhecemos a peripécia daquele monarca que o alfaiate vestiu apenas com gestos e medidas – nada de tecidos – e fez-se pagar bem por isso. Mesmo nesta cena já existe uma grande carga de ridículo; o homem todo-poderoso do reino acreditou mais no parecer do que no ser. Atribuiu maior veracidade à mímica do alfaiate do que à pura realidade que os seus olhos viam; que os seus olhos não viam… E todo aquele ridículo foi desmascarado mercê da observação límpida, descomprometida, lúcida, de um garoto que teve a coragem de evidenciar o que todos observavam e não viam: o rei ia nu.

Nesta sociedade, para valer, basta parecer que se tem valor; e – claro – fazer-se acreditar (as campanhas eleitorais não servem para outra coisa). Os caricaturistas fazem, nos jornais, o mesmo que o garoto da estória fez na praça pública: gritam que “o rei vai nu”. (Conclusão lateral: a praça pública, hoje em dia, são os media...)

Vem a propósito recordar como é que o caricaturista Leal da Câmara (1876 – 1948) definiu caricatura: “é sentarmo-nos ao lado do caminho a ver quem passa”.

É este o papel do caricaturista de imprensa: sentar-se à beira do caminho, com a mesma argúcia e o mesmo descomprometimento do garoto da estória e, vigilante, gritar que “o rei vai nu” sempre que algo lhe pareça menos conforme com a dignidade (e obrigação) do monarca.

A caricatura é, portanto, o resultado de um ponto de vista – é fruto do ângulo de visão do caricaturista. Contudo, deve ser objectiva. Tanto como uma reportagem ou uma notícia. Um cartunista é um jornalista. Com carteira de jornalista. Com carteira de jornalista emitida pela mesma entidade que certifica os redactores. A deformação que caracteriza a caricatura, o cartune, não deve atraiçoar a essência da mensagem, apenas a sublinha. Embora lhe compita espreitar um pouco mais para lá do manto diáfano do “politicamente correcto”. É uma prerrogativa sua, é a sua mais-valia.

O cartune de Quino, “A Quimera de Ouro” demonstra-nos o que acabei de escrever: o caricaturista limita-se a retratar a realidade. Cabe ao leitor a responsabilidade de decidir se a situação retratada tem graça ou não.

Na tela, Charlot vive uma situação que é hilariante para os espectadores de bilhetes de 10.000, faz rir menos alarvemente os remediados que compraram bilhetes de 1.000 e a mesma situação é pungente para os espectadores de bilhetes de 100. Este desenho é paradigmático. A caricatura é isto: pode ter diversas leituras legítimas. Outro pormenor mais ou menos técnico: Os ricos são apenas três; os remediados são quatro; e os pobres são cinco; e são os únicos que levaram um garoto ao cinema – a realidade não será essa, mas Quino tomou esse partido...

Para rir?... Ou reflectir?

A caricatura é, portanto, um veículo de reflexão, não necessariamente de divertimento. Em Espanha existe uma classificação para um certo tipo de humor, inócuo, sem carga crítica – apenas o sorriso pelo sorriso – uma classificação cuja expressão não tem sido usada em Portugal: “Humor blanco”. (Fique bem claro que o “humor blanco” em Espanha ocupa um pequeno espaço, a par de uma bem maior divulgação de humor de conteúdo sócio-político.)

Pessoalmente, não me repugna nada que se exerça o sorriso branco. “Es preferible rir que llorar”, como dizia a canção latino-americana. Mas rir apenas, rir em “blanco”, é pouco. Prefiro o riso amarelo. Que acrescente algo mais à dignidade humana, que torne o homem um pouco mais consciente das circunstancias da vida. O sorriso irónico é edificador, é consciencializador. E, por ser convidativo, aliciante, lúdico, salutar, torna-se um excelente veículo de comunicação. Segundo escreveu em 1913 Azorín, um autor espanhol, “o divertimento espiritual é sumamente importante na história do desenvolvimento humano; fazendo a história da ironia e do humor, teríamos feita a história da sensibilidade humana e por conseguinte a do progresso, a da sensibilização. A marcha de um povo está na marcha dos seus humoristas.”

Baudelaire, por sua vez, afirmou: “Sem dúvida alguma, uma história geral da caricatura nas suas relações com todos os feitos políticos e religiosos, graves ou frívolos, relativos ao espírito nacional ou à moda, e que têm agitado a humanidade, resultaria numa obra gloriosa e importante”.

Não abusando das citações, parece-me oportuna mais esta, de Ernst Gombrich: “O desenhador, por desdenhável que seja a sua qualidade artística, tem mais probabilidades de impressionar numa campanha de ódio do que o orador de massas e o jornalista”. O seu interesse radica não só na qualidade das obras (que seguem as modas estilísticas do momento) mas principalmente na grande quantidade de informação que fornece em síntese. Num tempo como o nosso, um... tempo sem tempo, basta um rápido relance sobre uma cronologia satírica para podermos fazer uma ideia perfeitamente clara acerca da forma de pensar daqueles indivíduos naquele momento. E tenhamos em conta estes três aspectos importantes do veículo: o cultural, o estilístico e o sociopolítico.

Um relance pelo passado

Todos os autores que têm estudado o tema estão de acordo acerca das origens do desenho satírico: com as características que hoje tem, mais ou menos, ele já vem desde as culturas Mesopotâmica, Precolombina, Egípcia. Temos, como exemplo, o desenho de um papiro da XX dinastia egípcia, que representa uma rata, sentada, recebendo uma flor de lótus que um gato lhe oferece; uma cerâmica grega, antropomórfica, do século V a.C., que representa Eneias, Aquiles e Ascânio, todos com cabeças de cão. Avançando no tempo, a caricatura medieval recolhe-se, como tantas outras manifestações artísticas, nas obras arquitectónicas religiosas. As grandes catedrais são um compêndio do humorismo da época, com as suas máscaras, monstros, figuras mitológicas, dragões, esculpidos em capitéis, púlpitos, gárgulas, frontarias... Muitas dessas divertidas figuras passam quase despercebidas, esmagadas pelo colosso arquitectónico que quase sempre as envolve.

Representam peripécias da vida quotidiana do povo, dos nobres e do clero, muitas vezes cheias de picardia, de irreverência. Três grandes mestres da pintura europeia enveredam por um humorismo de carácter crítico: Lucas Cranach, Peter Breughel e Jerónimo Boch. O quadro de Bosch (1450 – 1516), intitulado “Sacerdote demoníaco e Monstro”, é um verdadeiro cartune, ainda hoje perfeitamente actual. Alguns autores consideram, 500 anos depois da sua vida, Bosch como uma espécie de surrealista do século XV. Estamos numa época sem jornais nem televisão, cuja função, pelo menos a certo nível, é desempenhada pela pintura. Ela documenta, regista, por vezes critica; por exemplo pela via da caricatura. Bosch, segundo parece, teria estado ligado a diversos movimentos heréticos medievais.

Bosch, um caricaturista? Um surrealista no século XV? Uma discussão que não cabe aqui aprofundar. A verdade é que a caricatura continua a ser, ainda hoje, o motor da evolução estética. Isso deriva do seu carácter de irreverência, porque é pelo rompimento com o status que se dá um passo em frente. Sem um forte sentimento de irreverência não se é caricaturista. Sem irreverência, não se nega o estabelecido – a arte “oficial”, não se avança. Eis por que se encontram quase sempre os caricaturistas na vanguarda das artes.

Nomes de Coimbra

Há que fazer uma referência muito especial a Christiano Cruz (1892 – 1951), pioneiro do modernismo em Portugal. Foi num jornal dos alunos do Liceu D. João III, em Coimbra, que se publicaram os primeiros desenhos modernistas de que há conhecimento em Portugal. Na primeira página do primeiro número de “O Gorro”, Christiano Cruz, então com 17 anos, era o Director Artístico. O pai, oficial do exército, mandava-lhe vir revistas da Alemanha, em cujas ilustrações Christiano buscava influências. Aos 16 anos já se autocaricaturava com eficácia. Outros nomes da sua equipa, tanto de “O Gorro” como da “Farça”, igualmente editada em Coimbra, em que colaboravam simultaneamente: Luís Filipe. Um dos títulos de desenho é “Estudos de expressão”. Estamos perante os alvores do modernismo. Outros elementos do grupo, liderado por Christiano Cruz, são Cerveira Pinto e Correia Dias.

Seria imperdoável não referir a caricatura académica de Coimbra, os retratos satíricos das plaquettes e Livros de Curso. Uma prima afastada da Caricatura de Imprensa. O Livro de Curso mais antigo que se conhece data de 1903. Corrijo: não era ainda um livro, mas sim um folheto dobrado em harmónio.

Para a história intelectual portuguesa, Coimbra tem dado poetas, romancistas, jornalistas, pintores. Mas não tem dado caricaturistas. Não obstante Coimbra ser uma cidade onde se cultiva o bom humor! E onde se desenham milhares de caricaturas por ano! Mas então... há ou não há caricatura em Coimbra? Sim, mas apenas na vertente retrato satírico. Um perfil simpaticamente distorcido, com exageros à medida da encomenda do quartanista. Que paga a caricatura, portanto pode controlar a “agressão” gráfica. Ele sabe que está a perpetuar um momento muito importante da sua vida e não arrisca deixar-se ridicularizar nas páginas do livro de curso, da plaquette. Ora, isto é a antítese da verdadeira caricatura. E dá como resultado que o caricaturista de Coimbra condicione a sua visão deformativa, desconstrutiva, crítica. E então, a caricatura Coimbrã não salta para as páginas da imprensa, não ganha contundência.

Já ressalvámos a excepção do Grupo Modernista do Liceu D. João III. Tão episódica como estes, foi a actividade de Pedro Homero, nos anos 50, ainda assim com obra dispersa por O Primeiro de Janeiro, Riso Mundial, A Bomba, Século Ilustrado, Pónei, O Pagode, A Briosa. Nos anos 60, apareceu por Coimbra (durante pouco tempo) um excelente caricaturista. Praticamente não fez caricatura para as plaquettes, mas desenhou bastante para a revista Capa e Batina. E para Os Ridículos. Era o António Gomes Ferreira, com quem cheguei a encontrar-me algumas vezes. Ele assinava com pseudónimos e era funcionário da Companhia Nacional de Electricidade. Não era um caricaturista de nascimento artístico coimbrão, pois já trazia um curriculum assinalável de Lisboa. Presentemente a residir em Lisboa, está afastado das lides satíricas e recusou uma homenagem com exposição retrospectiva que lhe foi proposta.

Outros nomes importantes passaram por Coimbra, é certo, mas praticamente confinaram a sua obra satírica à criação de caricaturas para livros de curso (Tóssan, Célio, Kim Reis, Álvaro Matos, Rui Madeira, Bastos, Orlando, Eduardo, Quim Paixão...).

Caricatura Nacional

A caricatura de imprensa começa em Portugal em 1847, quando a gazeta “O Patriota” inicia a publicação de um suplemento satírico com desenhos de autores portugueses. Trata-se do primeiro cartune português, assinado por um tal Cecília. Antes, tinha-se divulgado uma ou outra caricatura, regra geral litografias, mas vinham do estrangeiro. É o caso desta, que satiriza as desavenças de opinião dos infantes (irmãos) D. Pedro e D. Miguel acerca do tratado com Inglaterra, mas trata-se de uma gravura inglesa.

Nesse ano (1847) nasce Rafael Bordallo Pinheiro (morre em 1904), o grande impulsionador da caricatura, dando brilhante continuidade a alguns antecessores (designadamente seu pai, profissionalmente funcionário superior).

Ainda acerca dos tratados e da amizade inglesa, existe o desenho de Rafael Bordalo Pinheiro, publicado no António Maria, em 1981: A Inglaterra representada sob a forma de Rainha Vitória, que já guarda nos bolsos Bombaim, Macau e Lourenço Marques, ameaça o Zé Povinho (que ainda segura Angola). Inglaterra ameaça o Zé com o papão, que é Espanha, representada sob a forma de um leão adormecido. Entretanto, Portugal dorme também num berço de bebé, chupando o biberão da lista civil. Na legenda, a Inglaterra adverte: “-Se o menino não quer que o papão o leve, é preciso que o menino me dê todos os seus bonitos”.

Vejamos como a caricatura pode ser intemporal. Já abordava os problemas das colónias, que haveriam de precipitar-se um século mais tarde, e já reflectia acerca da supremacia espanhola. (E o rei a dormir...)

Séc.XX

Daí para cá, houve vários nomes de referência: Leal da Câmara, Francisco Valença, os irmãos Octávio Sérgio e Armando Boaventura, Stuart, Amarelhe, Almada Negreiros, Carlos Botelho (estamos basicamente na primeira metade do séc. XX).

A segunda metade, mais obscurecida pelo salazarismo, (a partir de certa altura o regime não permitia sequer que se publicasse o retrato satírico de Salazar, quanto mais envolvê-lo em caricaturas de situação... O hoje chamado cartoon...), mais obscurecida pelo Salazarismo, castrou a caricatura de imprensa, que resumia o seu humor a piadas género de sogra e à sátira do futebol. Foram os jornais desportivos que, ainda assim, permitiram a subsistência da caricatura. E, nos subentendidos das peripécias desportivas, lá conseguiam fazer passar uma ou outra alusão à situação política.

Ainda apareceram jornais satíricos (Sempre Fixe, Ridículos, Parada da Paródia) mas condicionados pelo ambiente que acabei de descrever. Nomes de referência da segunda metade do séc. XX (até 1974): Baltazar; José Viana; José Vilhena; Martinez; João Martins; Francisco Zambujal; José de Lemos, Zé Manel, Cid, João Abel Manta, Varella, Sam.

Após o 25 de Abril, continuam quase todos estes e juntam-se-lhe um punhado de jovens: António, Vasco (que não é jovem mas regressa do exílio em França), Pedro Palma, Rui Pimentel, Carlos Laranjeira, Ricardo Galvão, Joana Campante, Carrilho, etc.

Imediatamente a seguir à Revolução, surge uma grande quantidade de publicações satíricas, de vida quase sempre fugaz. Exceptua-se a Gaiola Aberta, de José Vilhena, que durou quase três anos e agora reaparece. Entre as duas séries, José Vilhena editou outros títulos, praticamente sem concorrência.

Entretanto, eia a célebre caricatura de António que ridiculariza, em 1992, a opinião retrógrada do papa acerca do preservativo.

Por fim, Calvin: “A banalidade sem alma deste boneco de neve é um triste comentário sobre o mundo da arte actual”.

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Cidade-limite



Vista do Palácio Dolmabace, a partir de Bósforo



A Turquia é, a par de Espanha, o país promotor do Fórum Anual para a Aliança entre Civilizações, que tem lugar nos dias 15 e 16, em Madrid, e cujo alto comissário é Jorge Sampaio. Uma oportunidade para conhecermos melhor uma nação que (pretende passar de país associado da UE, desde os anos 60, a membro de pleno direito e) foi o berço de várias civilizações e impérios que fizeram a ponte entre o Ocidente e Oriente. Istambul (anterior Constantinopla e antiga Bizâncio), principal cidade do país, por exemplo, está dividida entre dois continentes, Europa e Ásia, através do estreito do Bósforo (na fotografia). Uma riqueza histórica que se reflecte na diversidade cultural actual, de que esta crónica testemunha.

Texto e fotografia Susana Nunes*

Por vezes, odeio esta cidade. Percorro o meu caminho o mais depressa possível, fugindo de qualquer troca de olhares. E a minha raiva aumenta a cada passo. Apetece-me esmurrar o próximo homem que olhe para o meu corpo e revelar toda a hipocrisia desta sociedade à primeira mulher que olhe com reprovação os meus tornozelos descobertos. Desejo que um novo dilúvio leve para longe toda a sujidade e este calor húmido que se entranha na pele e me consome. Esgotada, imploro por dois minutos de silêncio nesta cidade que não dorme nunca. Dois minutos apenas. Mas confesso que nunca me passou pela cabeça a ideia de desistir. Se após um ano aqui estou de novo é porque Istambul é realmente a cidade-limite: até mesmo o ódio e o amor se confundem facilmente. Toda esta raiva que sinto por momentos não é mais do que uma intensa forma de paixão.
Não percebi à primeira o que ela me tentava dizer. Devia ter pouco mais de 40 anos e, pelo lenço na cabeça e pelas suas roupas conservadoras, facilmente se percebia que aquele não era o seu lugar. Àquela hora da madrugada, não havia mais ninguém para além de nós no café da estação de serviço, numa cidade-fantasma, algures na Turquia. Foram várias as horas que ali passámos enquanto esperávamos pelo nosso autocarro. Ela parecia não ter destino. Acabei por perceber que estava em fuga, mas que tinha deixado muita coisa importante para trás. Apesar das evidentes dificuldades de comunicação e de um sorriso amargo nos lábios, tentava explicar-me que com a minha idade já tinha mais de três filhos. Muitas vezes penso no que teria acontecido para ela ali estar e em qual terá sido o seu caminho.
Embora este encontro não tenha ocorrido em Istambul, não poderia ser mais esclarecedor sobre o espírito desta cidade. Istambul pode ter um passado extremamente rico – foi a capital de três impérios – o Romano, o Bizantino e o Otomano – mas a maior parte dos seus habitantes chegou a este local há relativamente pouco tempo. No fundo, Istambul é um amontoado de diferentes histórias pessoais, de passados de diversas minorias, que tentam sobreviver juntas sem perder aquilo que as distingue umas das outras. Para além disso, Istambul é uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, com mais de 12 milhões de habitantes (existem estatísticas que chegam a referir 18 milhões), isto é, mais habitantes do que em todo o território português. Estes ingredientes são a principal base para uma cidade que fervilha sem cessar, onde o próprio ritmo de vida chega a ser difícil de acompanhar.
Em Istambul é impossível pensar-se a longo-prazo. Tudo muda de um dia para o outro. O bairro onde estou a viver actualmente é um exemplo perfeito da cidade-limite que é Istambul. Embora o meu apartamento esteja numa zona relativamente segura, este é um bairro considerado por muitos turcos como um local a evitar. Até mesmo os taxistas revelam alguma hesitação quando refiro “Tarlabasi”. O mais curioso, e inacreditável, é que, apesar disso, está localizado mesmo ao lado do coração comercial e cultural da cidade. Na verdade, não preciso de andar nem cinco minutos para estar na avenida mais conhecida de Istambul: a Istiklal. A linha divisória entre estes dois espaços é tão ténue que, muitas vezes, me sinto a viver na borderline, em todos os aspectos. De um lado, uma das zonas mais ricas da cidade, do outro o bairro de todos os “indesejáveis”.
Duas velocidades
Ninguém consegue ficar indiferente a esta cidade. Nunca senti tanta fluidez de pensamento como ao percorrer as suas ruas. O ritmo é alucinante e as coisas só param quando menos se espera, ou quando há futebol, claro. Uma das ruas em que este fenómeno é evidente é a já referida Istiklal. Muitas vezes me senti levada pela multidão, sem possibilidade de recuar ou abrandar. Muitas vezes entrei numa livraria ou num café, só para ficar a observar o fluir da multidão a partir de um dos andares superiores. É como se existissem duas comunidades que andam a ritmos diferentes. Uns permanecem diariamente no mesmo local e por ali andam, faça chuva ou faça sol. As únicas faces que reconheço são as dos mendigos e as dos vendedores ambulantes. As restantes perdem-se na multidão em movimento.
É curioso como esta rua está em constante mutação, seja de pessoas ou de locais. Durante a minha primeira estadia, todo o pavimento foi substituído por duas vezes (a primeira por necessidade, a segunda por alguém não ter ficado muito satisfeito com o resultado). Tenho ainda a sensação de que praticamente todas as vezes que a percorri descobri algo diferente, ou uma loja nova ou um pormenor que me tinha passado despercebido. Mesmo ao regressar a casa, de madrugada, já muitas são as pessoas que se preparam para a agitação de um novo dia.
Uma das profissões que mais se enquadra nesta peculiaridade é a de carregador ou transportador. Apesar de Istambul ser uma cidade cada vez mais moderna, estes não parecem estar em extinção, muito pelo contrário. É impressionante observar o trabalho dos carregadores de mercadorias pesadas, indivíduos que carregam quilos seja do que for às costas, literalmente. Lembro-me especialmente de uma mulher de bastante idade andar sempre para cima e para baixo com uma enorme carga de papelão (bem maior do que ela própria). Um dia, num artigo, acabei por descobrir que já tinha mais de 90 anos, que era reformada, e que só continuava a trabalhar por querer continuar a ajudar a neta a pagar os seus estudos.
Apesar de esta ser uma actividade cada vez menos frequente, existe um outro fenómeno bastante curioso, que se deve ao sucesso das entregas ao domicílio. Já era habitual observar a rotina dos vendedores de chá, que andam de loja em loja, de escritório em escritório, rua acima, rua abaixo a distribuir e a recolher copos com uma bandeja redonda. No entanto, a opção da entrega ao domicílio teve tanto sucesso entre a população, que actualmente pode-se encomendar quase qualquer tipo de produto por telefone, seja da farmácia, do supermercado, da tabacaria ou de um restaurante, praticante 24 horas por dia! Existe mesmo um website que engloba centenas de restaurantes e cafés, onde se pode encomendar qualquer tipo de comida (incluindo gelados!). Por isso, não é difícil imaginar a quantidade de estafetas que anda pelas ruas diariamente…
Tarlabasi
Por incrível que pareça, este bairro, Tarlabasi, considerado actualmente o mais problemático de Istambul, também teve os seus tempos de glória. Se tentarmos ver para além da sujidade e da deterioração, ainda encontramos muitos indícios da sua antiga magnificência. A rua onde vivo, por exemplo, pertencia a um antigo bairro grego, uma minoria que outrora teve um período de considerável riqueza. Os prédios, embora em decadência, ainda mantêm a sua arquitectura característica. Alguns ainda possuem estátuas na sua fachada. No meu prédio as escadas ainda são as originais, de autêntico mármore branco, com um corrimão de madeira de visível qualidade, trabalhada à mão (apesar de grande parte ter desaparecido, aproveitada provavelmente para aquecimento no Inverno).
Até à década de 50, este era um bairro próspero habitado por Gregos e por Arménios abastados. No entanto, após a fundação da República Turca, em 1923, a exigência de uma homogeneidade étnica e religiosa veio contrastar com esta comunidade não muçulmana, por isso, uma série de medidas governamentais discriminatórias levaram à partida forçada da maior parte dos residentes cristãos. Uma das medidas que mais impacto teve foi a do “Imposto de Riqueza” (1942-44), colocada em prática durante a II Guerra Mundial. Esta medida, implantada para a rectificação da economia, foi aplicada apenas em minorias, sobretudo gregas, judaicas e arménias, de forma a enfraquecer a dominação destes grupos étnicos na economia. Este sentimento de descriminação chegou ao seu auge quando, a seis e sete de Setembro de 1955, a população turca se juntou em revolta, em Istambul e em Izmir, contra estas minorias, pilhando os seus bens e as suas propriedades, entrando nas suas casas, espancando-as e ameaçando-as.
Muitos dos edifícios foram abandonados e, com o passar do tempo, Tarlabasi tornou-se o destino dos sem-abrigo e da população sem raízes, vinda de áreas rurais, sobretudo do Este da Turquia. A habitação barata atraiu imigrantes pobres de todo o mundo, incluindo refugiados do actual conflito iraquiano. Tarlabasi tornou-se num denso e caótico aglomerado de pessoas, num local deteriorado e com poucas condições de vida. Em 2000, estimava-se que cerca de 31 mil pessoas vivessem neste bairro, 78% das quais imigrantes. Estes habitualmente planeiam uma estadia curta, olhando para Istambul apenas como uma entrada fácil para a Europa, mas acabam por ir ficando. Na década de 90, o desejo de tornar Istambul “uma cidade do mundo” levou a que o espaço urbano fosse violentamente redesenhado. Durante esta operação de limpeza, 368 edifícios em Tarlabasi foram demolidos, muitos deles históricos. Beyoglu, do outro lado da Avenida Tarlabasi, foi alvo de um processo de gentrificação e tornou-se no centro de cultura e de entretenimento de Istambul. Tarlabasi simplesmente permaneceu do lado errado da avenida, o lado para onde foram varridos todos os indesejáveis, que sendo-o noutros locais aprendem a acolherem-se uns aos outros, à sua maneira. Enquanto, para muitos dos habitantes de Istambul, esta longa avenida apenas serve de ligação entre os diversos centros da cidade, para os residentes de Tarlabasi, esta é a “borderline”, a fronteira onde o trânsito se torna uma barreira, para que Tarlabasi permaneça isolado do resto da cidade e do mundo. Existe mesmo quem refira que Tarlabasi, sendo um bairro com um fluxo permanente de migrações, provavelmente está mais próximo de outras cidades com as quais tem relações espirituais do que aquela em que se encontra.
São habituais as disputas entre famílias e entre minorias num local em que o espaço público, se existe, está confinado às conversas em frente às suas portas, abertas para ruas-corredor. Recentemente, houve uma grande disputa entre curdos e ciganos, que obrigou à intervenção da polícia. Entre estes dois grupos a situação é algo frágil pois tendem a ver-se como rivais: ambos sabem que não são bem vistos pela sociedade turca em geral, por isso, acabam por competir pela posição menos inferior. Os curdos referem-se aos ciganos como infiéis e ladrões, os ciganos penduram bandeiras turcas nas janelas para lembrar que os curdos é que são perigosos para o país (dado que lutam por um estado independente).
Nem sempre a polícia se envolve nos conflitos em Tarlabasi. Num artigo intitulado “Tarlabasi: 'Another World' in the City”, por exemplo, Nermin Saybasili recorre a um conceito de Georgio Agamben para caracterizar este bairro: um “local deslocado”. Segundo Saybasili, enquanto a altamente visível presença das forças policiais exerce uma violência aberta sobre este espaço, também indica uma violência encoberta que constitui o espaço, pois os eventos que nele têm lugar muitas vezes não são vistos e são deixados por investigar.
É óbvio que os conflitos já fazem parte da rotina neste bairro. Sempre que vou trabalhar tenho de percorrer a Tarlabasi Boulevard, embora já só me atreva a fazê-lo do lado “certo”, e é impossível não reparar no carro de combate militar, um tanque, que já há anos se encontra em frente da sede da polícia do outro lado da avenida. Mas, muitas vezes, cheguei a atravessar este bairro, do lado “errado”, para ir para a universidade. Muitas vezes, até ao dia em que assisti a uma cena de espancamento colectivo de um único indivíduo. Não sei se foi do susto ou se realmente aconteceu, mas, a dada altura, pareceu-me ter ouvido os ossos do rapaz a partir com a força da paulada que levou nas pernas. Pareceu-me que todos os restantes sons e barulhos pararam e que ouvi cada estalido, como se assistisse a esta cena em câmara lenta. Ainda hoje me recordo perfeitamente do som. Encurralado numa esquina, rodeado por uma dezena de homens, não consigo, nem quero, imaginar o seu estado final. Em choque, desviei o olhar assim que me apercebi que um dos agressores olhava para mim, acelerei o passo sem correr, não olhei para trás quando me apercebi que me chamava e, apesar de não acreditar em religiões, rezei como uma crente fervorosa para que não me seguisse. Só parei quando a porta de casa se fechou atrás de mim e pude finalmente descarregar toda a tensão num ataque de choro incontrolável. Este foi um dos momentos em que não tive dúvidas de que odiava Istambul. Não repeti sozinha o mesmo percurso, mas também não me passou pela cabeça em desistir desta cidade.
Os vizinhos curdos
A primeira vez que entrei no prédio onde estou a viver actualmente pensei que não seria capaz de viver num lugar assim. Realmente, de noite, ninguém pode ter uma boa impressão deste local. As ruelas estreitas e escuras, o cheiro intenso vindo dos caixotes do lixo, o barulho dos gatos que fizeram da cave o seu local de refúgio… Mas, apesar de ser evidente que já há muito que precisa de obras de recuperação, acabei por ficar surpreendida com o estado do apartamento, bem mais “normal” do que esperava. As circunstâncias acabaram por determinar que esta fosse a minha morada fixa em Istambul no meu ano de estudante e que o voltasse a ser, nesta minha segunda estadia.
A multiculturalidade existente neste prédio foi o que mais me fascinou. A família mais marcante é, sem dúvida, a família curda que vive no apartamento imediatamente abaixo do nosso. Todos tivemos algumas dificuldades em perceber quantas pessoas moravam ao certo naquele apartamento e em compreender como seria a divisão do espaço. Nós éramos apenas cinco e nem sempre foi fácil a gestão do uso dos espaços comuns, principalmente o da única casa de banho. Naquele apartamento viviam três casais, cada um deles com os seus filhos. Considerando, que quatro filhos é o mínimo para uma família curda, bem… Talvez seja por isso que quase todos os dias nos apercebíamos de uma criança nova a entrar naquela casa e nunca tenhamos conseguido identificá-las todas. Também talvez seja por isso que, bem antes dos nossos despertadores tocarem de manhã, já os gritos ecoavam pelo prédio. As discussões e as crises são constantes e não têm qualquer problema em expressá-las verbalmente. Tudo termina uma meia hora depois, com um dos miúdos a chorar desalmadamente ou com alguém a sair de rompante e a porta a bater.
Acabei por me aperceber de que, embora provavelmente os homens tivessem a última palavra, o chefe de família naquela casa era a mulher mais velha. Entre os vários trabalhos que tinha, costumava ser ela a limpar as escadas do prédio, pedindo em troca 15 liras a cada família (e não havia quem lhe conseguisse fazer frente, por cobrar por algo que ninguém lhe tinha pedido, mesmo sendo o preço invulgarmente elevado). Lembro-me de um dia acordar com uma gritaria assustadora, desta vez mesmo à porta do nosso apartamento. Levantei-me a correr para me aperceber de que era a mulher, a reclamar pelo atraso do pagamento. Sem dúvida, descobriu um método eficaz e usa-o em todos os casos, seja qual for o problema: ninguém aguenta muito tempo os seus gritos estridentes.
Lembro-me também do dia em que toda a família pegou nas malas e se foi embora, orgulhosa por sair “de vez daquele buraco”. Um mês depois, para surpresa de todos os vizinhos, estavam de volta com as mesmas malas. Ninguém soube o que se passou durante aquele período nem onde estiveram. O mais engraçado foi a reacção da matriarca, assim que descobriu que já tinham arranjado outra pessoa para a substituir na limpeza das escadas. Começou pela táctica habitual, cansando toda a vizinhança com os seus gritos mas, como viu que o efeito desejado estava a tardar, pareceu desistir… No dia seguinte, cruzei-me com ela quando entrei no prédio. Sorriu para mim, abraçou-me e chamou-me de filha. Depois, apesar de habitualmente não fazer qualquer esforço para falar mais devagar, para que eu pudesse entender, disse-me calmamente, e ainda a sorrir, para eu não pagar à outra mulher porque estava a pensar em diminuir o preço habitual. No dia seguinte, e apesar das escadas terem sido limpas no dia anterior, acordámos com ela a lavar as escadas. E pronto. Tinha recuperado aquilo que era seu.
Quanto aos jovens da família, a situação também era algo peculiar. Muitas vezes vi as duas raparigas mais velhas a fumar às escondidas nas escadas (não imagino as consequências caso venham a ser apanhadas um dia por um dos membros da família). Não sei ao certo as suas idades, mas deviam ser bem jovens para ainda não estarem casadas. Apesar das diferenças religiosas (já usavam véu), olham para nós e para as nossas roupas modernas com risinhos infantis e envergonhados, como se as cobiçassem, apesar de terem consciência do pecado. Mais curioso ainda é a forma como desviam o olhar ao cruzarem-se com rapazes estrangeiros, com sorrisos sussurrados e faces rosadas.
Outra das invulgares personagens desta família é um dos rapazes mais velhos. Durante um jantar de amigos, bateu-nos à porta e entrou de rompante, ameaçando-nos com uma garrafa partida a servir de punhal. Logo de seguida, entraram outros dois irmãos, levaram-no dali e pediram-nos desculpa. Disseram que o rapaz tinha um parafuso a menos e para não nos metermos com ele. Uns tempos depois, descobrimos que era conhecido por ter
furado a mão do patrão com um espeto de kebab, num ataque de fúria. Como é que toda esta gente consegue conviver no mesmo apartamento? Ainda hoje não faço a mínima ideiaia.

* Apesar das diferenças mais evidentes entre Portugal e a Turquia, e embora quase tudo em Istambul ainda me pareça algo “estranho”, sinto que descobri algo mais sobre o meu próprio país durante a minha ausência. Estando actualmente a morar em Lisboa, todos os dias me das semelhanças profundas que existem entre estas duas cidades e entre estes dois povos. Em Istambul o Bósforo é uma parte viva da cidade, com os seus barcos a vapor e os seus pescadores. É nas ruas de calçada, estreitas e labirínticas, e nos seus pequenos mercados populares que encontramos a sua essência. As mesquitas, as vozes dos muezins a ecoarem por toda a cidade ao fazerem o chamamento para as cinco preces diárias. A música turca, o cheiro a peixe grelhado, futebol, futebol, futebol. Lisboa, o Tejo, os mercados, as igrejas, o fado, a sardinha assada, futebol. Mesmo aquilo que mais identifica o povo português deixa de parecer tão único em Istambul: a saudade. Segundo Orhan Pamuk, o Nobel turco da literatura, também Istambul e o povo turco vivem num permanente estado de saudade, “hüzün”, em relação aos seus tempos de glória. De acordo com Pamuk, “hüzün” não é a melancolia de uma única pessoa, mas sim algo sentido por milhões. Uma perda espiritual profunda ligada a uma certa esperança em relação ao futuro. Pelo que Pamuk sugere e pelo que tive oportunidade de experienciar em Istambul, também os seus habitantes esperam passivamente pelo retorno dos tempos de glória.
Todas as personagens incluídas nesta crónica são indivíduos que observei ou com os quais convivi. Não pretendo, de forma alguma, criar ou fomentar estereótipos de qualquer tipo. Tal como em qualquer outro país, na Turquia, e especialmente em Istambul, há que se ter em conta a multiculturalidade e a diversidade da população, não sendo possível qualquer generalização.

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quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Meio século de utopia


A paz e fraternidade entre a família europeia deixaram de ser apenas um ideal. Há 50 anos.

Texto e fotografia Dina Cristo

O primeiro dia do ano assinala nada mais do que a concretização do sonho europeu: a re-união da Europa. Inicialmente a seis, República Federal Alemã, França, Itália e os países do Benelux – Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos colocaram em marcha um processo de unificação. No dia um de Janeiro de 1948 entrou em vigor o Tratado constitutivo da CEE – Comunidade Económica Europeia – que criou um Mercado Comum Europeu e abriu as fronteiras internas.
Este tratado criou algumas políticas, como a agrícola, a PAC – Política Agrícola Comum - e instituições comuns, como a Assembleia (actual Parlamento Europeu), Conselho de Ministros, Comissão, Tribunal de Justiça, Comité Económico e Social, Tribunal de Contas e Banco Europeu de Investimento. Na mesma altura foi também criada a Euratom, Comunidade Europeia de Energia Atómica, para aumentar a produção energética europeia.
O Tratado de Roma, assinado (por Antonio Segni, Christian Pineau,
Joseph Bech, Joseph Luns, Paul Henri Spaak e Konrad Adenauer) em Março de 1957, tinha como objectivo uma integração económica progressiva que atingisse uma união política, a criação de um mercado comum e o relançamento da economia. Estávamos na época do pós-Guerra, com toda a consequente destruição e enfraquecimento da Europa num contexto internacional de domínio dos EUA e da União Soviética. Os valores da fraternidade e da paz subjacentes à (re)construção europeia eram fundamentais.
Vividas as consequências da guerra, os homens entenderam que o melhor, para todos, seria a (re)união. E para preservar a paz, não bastava a cooperação internacional, havia que aprofundar, integrar, fundir os países. Primeiro em termos económicos, depois administrativos até à dimensão política. Nações até aí separadas integraram uma união maior, foram-se (e vão-se) tornando num só.
Eliminam-se as fronteiras, primeiro de bens, depois de pessoas. Hoje, qualquer cidadão - além dos países do núcleo duro, do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca (que aderiram em 1973), Grécia (1981), Portugal e Espanha (1986), Áustria, Finlândia e Suécia (1995), Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e República Checa (2004) e Bulgária e Roménia (2007) - pode estudar, trabalhar e/ou viver nos outros países. A nossa identidade, experiência e percepção mudaram. Somos actualmente uma comunidade de 27 estados ou regiões de uma comunidade em edificação.
Tratados até Lisboa
O tratado fundador da união europeia teve os seus antecedentes, como a instituição da CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – que durou precisamente meio século, de 23 de Julho de 1952 à mesma data em 2002, e haveria de ter vários consequentes.
O primeiro foi o chamado Tratado de Fusão, assinado em Bruxelas, e que, no final dos anos 60, instituiu uma Comissão e Conselho únicos para as comunidades então existentes (CECA, CEE e Euratom). Mais tarde, no final dos anos 80, entraram em vigor o Acto Único Europeu, que estabeleceu a União Económica e Monetária, e, no início dos anos 90, o Acordo fundador da União Europeia (UE), conhecido como Tratado de Maastricht, criando o Mercado Único e com pilares ao nível da justiça, assuntos internos e defesa, com a PESC – Política Externa de Segurança Comum (que havia fracassado, em 1954, com a tentativa de criação da CED – Comunidade Europeia de Defesa).
Em menos de dez anos (últimos), assinaram-se os Tratados de Amesterdão (com alterações aos anteriores), de Nice (com versão única dos acordos antecedentes e uma reforma institucional) e, em 2004, o Tratado de Roma II, estabelecendo uma Constituição Europeia - rejeitado, em 2005, pela França e Países Baixos. Por fim, o Tratado de Lisboa, assinado há menos de um mês, que altera o Tratado da UE e o que instituiu a CE – Comunidade Europeia (resultado da transformação da anterior CEE, no Tratado de 1993).
União fortalecida
Há cinco décadas que os políticos europeus, em vez de utilizarem estratégias militares, sentam-se às mesas, conversando, tentando encontrar uma unidade na diversidade, harmonizando diferenças, convergindo. Dirigentes europeus tentam pôr em prática aquilo que (n)os une: os valores – cooperação e solidariedade, liberdade e tolerância, Estado de Direito, democracia, direitos humanos. Tal, tem um preço: a cedência de parte da soberania dos Estados-Membros em relação a algumas competências.
Ninguém prometeu que seria fácil. Compatibilizar a prosperidade económica e o modelo social, convencer os homens de que a união faz a força, o alargamento da família só nos pode trazer mais paz e alegria, a fraternidade (a união da humanidade, escrita por Schiller, em 1785, e musicada por Beethoven, em 1823, sonhada por tantos génios da humanidade) concretiza-se, passo a passo. Oportunidade para escutar “Ode à Alegria”, Hino oficial dos estados unidos da Europa, desde 1985.

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