Muro (reconstruído) no qual se fuzilavam os prisioneiros políticos e os resistentes de Auschwitz
Nesta segunda parte[1] detemo-nos, além dos conceitos e realidades, na evolução dos Direitos Humanos: dos valores da liberdade aos de solidariedade (última geração) - caso da petição por um 31º artigo sobre o acesso a água potável. Perguntamos se, nestes 60 anos, tem a educação cumprido o seu papel.
Texto e fotografia Fernando Sadio Ramos
Os Direitos do Homem aparecem como concretizações efectivas de algo que constitui a sua razão de ser: a Dignidade do Homem. A ideia fundamental que subjaz a qualquer referência a Direitos do Homem é a de que o Homem, por ser Homem, é dotado de Dignidade. Esta assume-se como sendo a fonte de todos os valores plasmados nos Códigos de Direitos do Homem, a fonte inexaurível de novas formas e criações da Liberdade no decurso da praxis constitutiva de uma sociedade regida por aqueles e respeitadora dos mesmos. Ter Dignidade significa que se transcende a mera factualidade do ser-objecto integrante da Natureza. Transcendente à factualidade, a Dignidade diz-se de muitas maneiras e concretiza-se de inúmeras formas. Nesse sentido, a História, a Cultura e a Civilização permitem-nos ver de que modo se vai dando conteúdo concreto a essa Dignidade fundamental, que varia temporal e espacialmente, assumindo sempre novas formas mediante a intervenção da praxis. Supondo que se vai progredindo – por muito pouco que seja e por mais retrocessos que se verifiquem – no advento da Dignidade humana, poderemos ver na História um crescendo de concretizações dessa fonte do valor do Homem. Os Códigos específicos e concretos em que se plasma a Dignidade do Homem, as culturas e respectivos valores informantes, são momentos num processo permanentemente in fieri de humanização do Homem.
Naturalidade
A noção de “Direitos do Homem” implica a afirmação de uma exigência que estou autorizado a fazer precisamente por ser membro da espécie humana, e que não necessita de qualquer referência a uma possível concessão por parte de terceiros. Nesse sentido, podemos dizer que os Direitos do Homem são naturais, isto é, fazem parte da natureza ou do ser do Homem. Como tal, não dependem de atribuição ou benesse da parte de quem quer que seja. A sua naturalidade (no sentido em que a definimos) não significa que estejam dados automaticamente, de uma vez por todas e que os seres humanos deles estejam conscientes. A alienação relativamente à Dignidade que nos constitui é possível; já a alienabilidade não é aceite em termos de Direitos do Homem, como veremos brevemente. A mesma naturalidade não implica, igualmente, que os Direitos do Homem não sejam históricos. Com efeito, foi através da praxis humana que os mesmos advieram à realidade, constituindo aquilo a que, em termos kantianos, se chama o Reino da Liberdade. Do mesmo modo que os Direitos do Homem se constituem historicamente pela intervenção da Liberdade, podem regredir ou ser anulados na sua realidade efectiva se a consciência do valor da Dignidade do Homem se perder ou se reduzir.
A naturalidade dos Direitos do Homem significa que ninguém pode outorgar o direito à dignidade e à integridade física e psíquica das vítimas da violação daqueles. É evidente que o dever de respeito desses direitos pode ser infringido por outrem – seja ele um indivíduo, o Estado ou uma corporação mercenária –, mas essa violação não anula o facto de que a condição humana implica, por si mesma, o direito ao respeito desses direitos.
Igualdade, Universalidade, Inalienabilidade e Interdependência
Da naturalidade dos Direitos do Homem, decorre que todos os seres humanos, por o serem, têm os mesmos direitos. Assim, surgem como características essenciais dos Direitos do Homem a Igualdade, a Universalidade, a Inalienabilidade e a Interdependência. Todos os seres humanos são iguais em dignidade, pelo que os Direitos do Homem são universais. Ninguém pode ser destituído deles, nem pode abdicar deles, mesmo que dê o seu consentimento, pelo que são absolutamente inalienáveis. A interdependência é outra das suas características fundamentais. Um Direito do Homem implica os outros de modo que não podemos retirar um sem colidir com os outros. O direito à vida não se pode exercer plenamente sem liberdade. O direito à liberdade não é pleno sem educação e sem segurança, por exemplo. A pobreza não permite a participação política na vida da sociedade, o acesso à justiça e assim sucessivamente. Destes valores e direitos decorrem outros, entre os quais destacamos a não-discriminação, a tolerância, a justiça, a responsabilidade.
Todos os Direitos do Homem são, consequentemente e como referimos anteriormente, uma declinação do valor essencial da Dignidade Humana. Assentam numa concepção antropológica e ontológica de raiz aristotélica e nominalista, que dá o primado ao ser individual, isto é, à Pessoa humana concreta, enquanto verdadeiro sujeito de valores, direitos e fonte dos mesmos. Só é possível falar em direitos dos Povos e das Colectividades, por exemplo, se se tiver em conta que o que realmente existe é a Pessoa humana individual e concreta, e que o termo geral com que se designa um qualquer colectivo humano tem apenas o estatuto de um vocábulo, de um instrumento de pensamento lógico e, por conseguinte, é dotado de uma existência meramente ideal. É importante sublinhar este ponto pois, em nome da “Humanidade”, milhões de pessoas têm sido mortas e torturadas pelos zelotas/ fariseus/ iluminados/ beatos e outras encarnações da pretensa superioridade moral de que o ser humano tende a padecer. Protejamo-nos dos zelosos defensores da “Humanidade” que, de tão ofuscados pelo seu brilho inteligível, a não conseguem reconhecer no seu Próximo.
Gerações
Os Direitos do Homem definiram-se historicamente de modo sucessivo, ao longo de várias etapas marcadas pela predominância de uma certa dimensão dos mesmos. Ao resultado desse processo, convencionou-se designá-lo de “gerações”. A apresentação do processo segundo uma sequência de Gerações de Direitos do Homem tem o perigo de, por um lado, poder fazer-nos perder de vista a interdependência essencial dos Direitos do Homem e, por outro, de nos fazer esquecer do seu carácter de permanente conquista histórica e de realidade frágil e em risco constante. No entanto, se tivermos estas advertências em mente podemos, por uma questão pedagógica, utilizar essa ordenação.
1.ª Os Direitos da Liberdade – Civis e Políticos
Deste modo, podemos encontrar uma 1.ª Geração – os Direitos Civis e Políticos –, que são essencialmente os Direitos da Liberdade. Temos, assim e por exemplo, a liberdade de expressão e de associação, o direito à vida, a um julgamento justo, à participação na vida política da sociedade.
Estes direitos definiram-se sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII e na origem da sua conquista estão sobretudo preocupações políticas que visavam limitar o poder do Estado relativamente ao indivíduo. Têm, consequentemente, como ideias centrais a defesa da liberdade pessoal e a protecção do indivíduo face à prepotência do Estado. A actualidade Portuguesa tem apresentado um conjunto de factos que mostram à saciedade o carácter precário das garantias da Pessoa face ao poder do Estado a propósito de um processo judicial muito mediático, que se arrasta há vários anos
[2], e quão errados andam aqueles que falam, em nome da segurança, em “excesso” de garantias legais de protecção dos direitos e liberdades fundamentais.
2.ª Os Direitos da Igualdade – Económicos, Sociais e Culturais
Existe uma 2.ª Geração de Direitos do Homem – a dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais –, os “Direitos de Igualdade”. A título de exemplo, refiram-se os direitos ao trabalho, à saúde, à educação.
É ao longo dos séculos XIX e XX que estes direitos se conquistam. Têm como principal preocupação a vida em sociedade, o trabalho e a satisfação das necessidades básicas da vida. As ideias de base são a igualdade e a garantia de acesso aos bens essenciais (sociais, económicos, coisas, serviços e oportunidades).
3.ª Os Direitos da Solidariedade – Colectivos
Podemos falar de uma 3.ª Geração – a dos Direitos Colectivos (das Sociedades e dos Povos) – os “Direitos de Solidariedade” –. Chamam-se, também, “Direitos emergentes”, na medida em que estamos em pleno processo da sua definição e promulgação. Podemos dar como exemplos deles o direito ao desenvolvimento sustentável, à autodeterminação dos povos, à paz e ao ambiente saudável.
Estes direitos têm uma ideia central, a de solidariedade. Efectivamente, nas presentes circunstâncias do mundo, ninguém pode pretender ficar imune a questões como as da pobreza pelo facto de beneficiar de boas condições de vida na sua sociedade ou de viver num condomínio fechado numa cidade rodeada de favelas. Mais cedo ou mais tarde, o carácter precário desse bem-estar pode tornar-se bem patente com os excluídos a baterem-lhe à porta, para usar uma linguagem eufemística. Tudo se repercute em tudo, tudo está estreitamente inter-relacionado, globalizado e, nesse sentido, os problemas – onde quer que se situem, por mais distante que seja o local onde ocorram – são sempre assunto de todos e partilhados por todos, quer nas suas consequências, quer nas soluções a adoptar para os mesmos.
Esta Geração de Direitos do Homem tem um carácter particularmente problemático. Por um lado, como a sua definição é uma tarefa em curso, esses Direitos caracterizam-se por uma indefinição mais ou menos acentuada, o que nos permite ver como os Direitos do Homem não nos foram dados ou outorgados por nenhum benemérito ou filantropo, mas afirmados pela acção e luta da liberdade e da crítica. Por outro lado, a seu propósito coloca-se a questão de poderem ou não manter a designação de “Direitos do Homem” ao serem atribuídos a entidades colectivas, quando a essência destes é serem, primordialmente, direitos da Pessoa individual e concreta.
Dois exemplos podem ilustrar a dificuldade. Não é inconcebível a possibilidade de, em nome da segurança de uma comunidade ou de um povo, se instituir uma ditadura que prive os seus cidadãos dos direitos e liberdades fundamentais. Considerem-se os casos ocorridos historicamente ou, na actualidade, a embrionária incubação do ovo da serpente na actual Itália consular. Existe ainda a questão da responsabilidade – quem deve ser responsabilizado por uma violação dos Direitos do Homem é, à luz da doutrina que preside a estes, alguém individualmente tomado, e não povos ou comunidades. É Eichman quem responde por crimes contra a Humanidade, não o povo Alemão, e assim sucessivamente para qualquer exemplo que queiramos dar. Quem deverá ser responsabilizado pelo efeito de estufa e suas consequências?
Todavia, alguns direitos colectivos já foram definidos, nomeadamente o Direito à Autodeterminação dos Povos (em 1948, na DUDH) e o Direito ao Desenvolvimento, declarado em 1986 pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas. Em curso, está a definição de direitos em áreas particularmente relevantes nos nossos dias, nomeadamente no que diz respeito às questões colocadas pelo progresso científico e pela biotecnologia.
Fala-se também numa 4.ª geração de direitos – os “Direitos de Qualidade de Vida”, os quais implicam uma cidadania de qualidade (direito ao lazer e ao acesso a bens culturais, por exemplo) –, mas estes direitos podem ser considerados como estando já incluídos nos direitos de 2.ª geração e dependendo da realização do conteúdo puro e duro destes.
Alguns documentos fundamentais
Os Direitos do Homem podem ser encontrados em inúmeros documentos de todo o tipo e em legislação da mais diversa. Por exemplo, na Constituição da República Portuguesa (CRP). Deixo, por isso, apenas as seguintes referências mais gerais:
· Carta Internacional dos Direitos Humanos, que é constituída pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948, Organização da Nações Unidas), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) e pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966).
· Convenção dos Direitos da Criança (1989).
· Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem (1950/1998).
Educação para os Direitos do Homem
Falámos por diversas vezes na importância de consciencializar as Pessoas para a sua Dignidade e respectivos direitos. O Conselho da Europa, organização à qual já nos referimos anteriormente, entende por Educação para os Direitos do Homem os “programas e actividades educacionais centrados na promoção da igualdade na dignidade humana, em conjunção com outros programas tais como os que promovem a aprendizagem intercultural, a participação e a capacitação das minorias.”[3]
Esta definição dá corpo ao que se diz da Educação na Declaração Universal dos Direitos do Homem: “A Educação deve estar dirigida para o desenvolvimento integral da pessoa humana e para o reforço do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. Deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações, grupos religiosos e raciais, e apoiar as actividades das Nações Unidas na manutenção da paz.”
[4]
A partir destes pressupostos fundamentais, podemos dizer que a finalidade essencial da Educação para os Direitos do Homem será a de contribuir para o advento de uma cultura onde eles sejam parte integrante da vivência e da acção dos seus membros, que os devem tomar como algo a ser preservado como condição primeira e essencial para a promoção da Dignidade Humana e de uma vida que valha a pena viver. Tal cultura implica que o respeito pela Dignidade Humana deve enformar profundamente a prática social e individual, quer no sentido da manutenção das conquistas entretanto efectuadas, quer no da promoção de novas dimensões de realização dessa Dignidade através da crítica às situações de facto e da inserção de novos valores na realidade.
A Educação é, pela sua própria natureza, um terreno particularmente relevante para este desiderato e tem, assim, um forte componente de cidadania política. Pelo facto de estarmos ligados a ela, estamos sempre a contribuir de uma ou outra forma para o respeito ou – esperemos que não – desrespeito pelos Direitos do Homem.
Os conteúdos fundamentais da Educação para os Direitos do Homem poderão ser, sem exclusão de outras propostas e formulações, os seguintes:
a) o conhecimento e a prática dos Direitos do Homem, do valor da Dignidade Humana e dos valores democráticos;
b) a consciencialização para a liberdade constitutiva da humanização do Homem, para a identidade e a diferença antropológica;
c) o desenvolvimento de competências interpessoais e intelectuais, bem como de competências pragmáticas da linguagem;
d) a capacitação para uma cidadania activa e participativa.
Nesta prática, ao agir localmente, nos grupos de cuja responsabilidade estamos incumbidos, introduzimos mudanças na realidade que, pelo seu concurso recíproco, acabam por ter implicações na mudança global.
Fundamental neste processo é a consciencialização dos agentes para esses valores e para reconhecerem as suas violações, bem como a sua capacitação para intervir na promoção do seu respeito nas diversas circunstâncias em que decorra a sua acção e intervenção na sociedade.
Responsabilidade actual
Chegado ao fim destas reflexões, gostaria de sublinhar a importância do exercício de uma cidadania crítica, activa e participativa que diga “não” às violações dos Direitos do Homem que, de uma forma inadmissível, continuam a pautar a nossa época e que se empenhe corajosamente em promover o seu respeito em toda e qualquer circunstância.
Assim, poderemos estar à altura do privilégio único do nosso tempo. Com efeito, as violações dos Direitos do Homem que se verificam actualmente resultam particularmente ultrajantes precisamente porque nunca época alguma da História da Humanidade teve ao seu alcance as possibilidades que a nossa tem de transformar o mundo para melhor. E, paradoxalmente, nenhuma terá feito tanto para desperdiçar a oportunidade de introduzir um verdadeiro progresso no mundo, a saber, o progresso na Dignidade, Igualdade e Liberdade.
A pior servidão é aquela em que não se tem consciência de que se é servo e não se consegue sonhar com a ideia de uma outra realidade possível além da que nos rodeia. Tem já muitos séculos esta advertência, tantos quantos os da escrita do Fédon platónico
[5]. Traço característico dos dias de hoje é o facto de muitas forças concorrerem para nos retirar a capacidade de conceber outros mundos possíveis além daquele em que nos encontramos mergulhados, assim como de os produzirmos mediante a praxis e a Liberdade.
À Educação compete – como sempre competiu e como ela sempre cumpriu – manter desperta essa não-aderência do Ser Humano ao imediato e promover o desenvolvimento da capacidade de, pela palavra interna e externa, pelo diálogo e pela dialéctica, desvelar o (ainda) não-existente que é condição do futuro que poderá vir a existir através da praxis transformadora do ser.
Esta é uma responsabilidade nossa, que não podemos alijar e pela qual devemos estar preparados para responder perante os nossos vindouros.
[1] Seguirei de perto o texto de Compass, que contém úteis indicações bibliográficas sobre a questão dos Direitos do Homem e da Educação para os Direitos do Homem.
[2] Refiro-me ao Processo da Casa Pia.
[3] Compass, p. 17.
[4] Artigo 26.º
[5] 83c.
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