quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Infinita sabedoria

Num ano em que se comemoram 460 sobre o seu nascimento, revemos um dos livros de Giordano Bruno, “Acerca do infinito, do universo e dos mundos”. Em cinco diálogos, o autor expõe, no séc. XVI, como o universo está cheio de infinitos mundos invisíveis aos sentidos e pleno de vida.

Texto Dina Cristo

As pessoas estão mortas em vida, pois têm no corpo a cadeia que as acorrenta. Os sentidos atraiçoam: eles não vêem o infinito e enganam nos juízos que fazem, como no caso do movimento da Terra, que nos é insensível. Para além do limite imaginário do céu, existem corpos mundanos, astros, Terras e Sóis ilimitados: «Existem terras infinitas, sóis infinitos, e éter infinito»
[1].
Há, pois, que ver com os olhos da razão e ser douto por ciência e não por fé: julgar correctamente em vez de acreditar. Teólogos e filósofos sabem «que a fé se requer para a educação dos povos rudes, que devem ser governados, e demonstração se requer para os iluminados, que se sabem governar a si próprios e aos outros»
[2].
Plenitude celestial
Omitido por Galileu, é contra Aristóteles, quando este defendeu que fora do céu estava o nada. Se existe o vácuo, argumentou, então deve poder conter mundos, se não existe é porque é o pleno. Para o filósofo dominicano todo o espaço infinito é semelhante a este que vemos. Se este mundo é conveniente, pleno, bom e necessário, os outros também o serão.
No Séc.XVI Giordano Bruno defendeu que o vazio não existe - «A experiência é contrária ao vácuo e não ao pleno»
[3] - há vida em todos os planetas e os outros mundos são povoados como a Terra. O espaço infinito «que se difunde por tudo, penetra em tudo, e é continente, contíguo e contínuo a tudo, não deixando vácuo algum»[4] é o lugar onde tudo se move e desliza. No espaço imenso e amplo não há diferença entre direita e esquerda, em cima e em baixo, adiante e atrás. O infinito não tem centro nem margens. Há um só céu.
(In)finitos mundos
O corpo terrestre não é mais do que um ponto entre mundos inumeráveis. O universo é infinito, mas é finito cada um dos inumeráveis mundos que contém: «Cada um dos infinitos mundos é finito»
[5]. Se Deus é infinito cria mundos infinitamente finitos; se a potência é infinita o acto também o é. Há uma eficiente alma motriz, impulsionadora dos globos, ser necessário e imutável, que compreende o infinito, o número em potência. A causa operadora comporta o efeito.
O Divino, poder e vontade, está inteiramente em todo o mundo e em cada uma das suas partes. O amplíssimo infinito está no indivíduo simplicíssimo e este está nele, pelo modo como o infinito está em tudo e tudo está nele. O todo está em todas as partes e todas as partes estão no todo. O universo, além de conter o mundo, é também o espaço fora dele. O vácuo é aquilo que pode conter qualquer coisa, como os átomos, o princípio infinito e imóvel, é invulnerável e o infinito não pode ser terminado, enquanto os corpos são vulneráveis e dissolúveis.
Esferas invisíveis
O infinito é uma região etérea imensa, onde existem inumeráveis corpos, como a Terra, a Lua, o Sol. Os mundos são as esferas, corpos incontáveis colocados no éter, o ar, espírito que, além de estar à volta dos corpos, penetra neles. No infinito não há qualidade de grave ou leve. Ele não é móvel, nem em potência nem em acto, mas completamente imóvel, inalterável e incorruptível. É a infinita duração, a eternidade.
Para Giordano Bruno, é necessário que existam mais Sóis inumeráveis «sendo muitos deles visíveis sob a espécie de pequenos corpos»
[6]. Não lhe espantaria, pois, que os astros que estão para além de Saturno (e que podem receber tanto calor quanto lhes baste) se são imóveis verdadeiramente como parecem, venham a ser os inumeráveis Sóis em torno dos quais giram as terras próximas que não são perceptíveis por nós. Para os que vivem no Sol não é este que faz o dia, mas outra estrela circundante: «aos que estão nos astros luminosos, ou iluminados, não é sensível a luz do seu astro, mas a dos circundantes»[7].
Na verdade, são infinitas terras – como a Lua, Mercúrio ou Vénus – que giram à volta de incontáveis sóis: «Nem é absurdo que existam ainda outras terras que se movam em torno deste sol (…) Além dos visíveis, podem ainda existir inumeráveis lumes aquosos (isto é, terras em que a água toma parte) que giram em torno do sol»
[8].
Movimento renovador
Embora limitado, há movimento no finito. Todos os astros se movem, nas suas regiões e distâncias no campo etéreo, pelo princípio interno que é a sua alma. Esta essência divina move tudo e dá a todas as coisas a possibilidade de se moverem – ela é a Vida das vidas. Assim, há dois princípios activos do movimento: o finito, que se move no tempo, segundo a razão do sujeito finito, e o infinito, que se move no instante, segundo a razão do sujeito infinito. Neste caso, como acontece com a Terra, partir e chegar são simultâneos, pelo que se mantém estável: o mover-se é, ao mesmo, tempo, não se mover
[9].
Os astros, que são inúmeros bem como os mundos nele contidos e diferentes na matéria, assemelham-se no movimento para o seu espaço. É a gravidade, o impulso das partes que estão longe para o seu próprio local. Cada parte reflua e volta para o grande corpo, o todo. Qualquer dos corpos do universo é transmutável, difundindo parte de si e sempre em si recolhendo. Ao nível atómico, por exemplo, há infinitas transformações, quer de formas quer de lugares, numa renovação em que «(…) continuamente flúem em nós novos átomos e partem de nós os recolhidos de outras vezes»
[10]. Nesta mudança, o crescimento implica um maior influxo, o envelhecimento um maior defluxo (obedecendo à debilitação constante) e o amadurecimento um fluxo equivalente.
Acção centrípeta

Cada astro, como cada alma, tem o seu centro. O todo, como cada parte, tem o seu meio (no caso do Ser Humano é o coração), para o qual tende naturalmente – o extrínseco da circunferência é a parte superior e o intrínseco a inferior: «(…) nem um astro no seu todo, nem parte dele, estariam aptos a moverem-se para o meio dum outro»
[11]. Uma Terra, animal móvel, não se move para outra, próxima ou afastada que esteja. O desejo de conservar-se é o seu principal princípio motor.
Os astros, como o globo terrestre, movem-se no imenso espaço etéreo, em torno do próprio centro e de qualquer outro meio, por princípio intrínseco. Os cometas são espécies de astros que se aproximam e afastam da Terra, por atracção e repulsão. Tudo o que se move espontaneamente tem translação circular, ou em torno do seu meio ou em volta de um alheio. Durante um longo curso de séculos, não há, contudo, parte central que se não torne circunferencial e vice-versa; no decurso de enormes intervalos de idades, os mares transformaram-se em continentes e estes em oceanos. Na verdade, só no infinito ilimitado não existe movimento ou diferença entre o tempo e o lugar.

Corpos luminosos e moderadores

Em cada membro da Terra existem, de forma clara ou latente, pelo menos três dos quatro principais elementos: terra, água, ar e fogo. Tanto o Sol como a Terra são compostos dos mesmos princípios, embora predomine um. Se na sua composição predomina o fogo chama-se Sol, se é a água chama-se Terra.
Para Giordano Bruno, as terras infinitas são móveis e não cintilam enquanto os fogos são fixos e brilham. Há, pois, dois tipos de corpos luminosos: os aquosos ou cristalinos, constituídos por águas iluminadas, e os ígneos, constituídos por chamas luminosas, sendo os seus mundos igualmente habitados.
O universo é ainda constituído por corpos contrários, como o quente e o frio, que, difundidos no campo etéreo, se equilibram; o fogo (quente e seco) e a água (fria e húmida) harmonizam-se por conflito. «O frio e o húmido aniquilar-se-iam com o quente e o seco; ao passo que, dispostos a certa e conveniente distância, um vive e vegeta por influência do outro»
[12].
Todas as partes que a Terra possui não são luminosas por si próprias, mas tem partes de fogo. O Sol, que é por si próprio quente e luminoso, só é arrefecido pelos corpos circundantes, mas tem em si partes de água. «E como neste corpo frigidíssimo (…) existem animais que vivem pelo calor e luz do Sol, assim naquele quentíssimo e luminoso existem aqueles que vegetam pela refrigeração dos corpos frios circundantes»
[13].
Terra d´água
A água não está apenas e principalmente à volta da Terra mas no seu próprio seio. O meio do planeta é mais lugar de água do que de terra. Nós habitamos «(…) no côncavo e escuro da terra, e temos para os animais, que existem sobre a terra, a mesma relação que os peixes têm para nós (…) também nós vivemos num ar mais carregado do que aqueles que estão numa região mais pura e tranquila»
[14].
É a água que une e dá coerência às partes, tal como a substância espiritual dá coerência à material: «em todo o corpo sólido que tem partes coerentes existe água»
[15]. As coisas espessas, além de possuírem maior participação de água, são a água em substância, como é o caso dos metais liquescíveis. A firmeza da terra deve-se também à água que está dentro dela como o sangue (e humores) no Ser Humano.

[1] BRUNO, Giordano – Acerca do infinito, do universo e dos mundos, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pág. 63 [2] Idem, pág. 43 [3] Idem, pág.32 [4] Idem, pág. 174 [5] Idem, pág.139 [6] Idem, pág. 92 [7] Idem, pág. 96 [8] Idem, pág. 90 [9] Idem, pág. 47 [10] Idem, pág. 67 [11] Idem, pág.129 [12] Idem, ibidem [13] Idem, pág.96 [14] Idem, pág.106 [15] Idem, pág.111

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