Comemora-se este Sábado a primeira edição de “O Figueirense”, um dos mais antigos jornais portugueses. Neste artigo recordamos as primeiras três séries do periódico, com início em 1863, 1900 e 1918.
Texto e fotografia Luís Manuel Martins
O jornal “O Figueirense” é uma publicação com uma longa história. Fundado em 9 de Agosto de 1863 por Augusto Silvério de Oliveira (1827-1902), um abastado industrial regressado há poucos anos do Brasil, era então um jornal semanário impresso na Tipografia Figueirense que marcara o alvorecer da imprensa jornalística na Figueira da Foz. A Tipografia Figueirense foi criada em 1862 pelo mesmo proprietário de “O Figueirense” e situava-se na Rua da Oliveira, junto ao Largo do Carvão, em pleno centro da então vila da Figueira da Foz, que só viria a ser elevada a cidade por ocasião da visita real de D. Luiz I, em 1882. O equipamento de impressão era, porém, muito rudimentar e os recursos humanos escasseavam.
O jornal tinha o formato in-fólio com quatro páginas e três colunas. O primeiro número foi impresso em papel de várias cores, nomeadamente em branco, verde, azul e cor-de-rosa, de forma a captar a atenção do público. O preço de assinatura era, à data da primeira edição, de 2.000 réis por ano e 1.200 por semestre. Os anúncios custavam 20 réis por linha, enquanto que os comunicados e as correspondências de carácter particular tinham o custo de 10 réis.
Conceito
A estratégia comercial de “O Figueirense” passou por um interessante e ambicioso desafio de defesa dos recursos da Figueira da Foz e uma proximidade do público, preconizando ainda uma importante meta para a objectividade – o distanciamento político, tal como deixam entrever as linhas do programa editorial saído no primeiro número do jornal:
“Advogar os interesses da terra que o vio nascer; empregar toda a actividade, todos os esforços da sua intelligencia na consecução progressiva dos seus diversos melhoramentos e na satisfação das suas variadas e multiplices necessidades, é o fim a que se dirige o «Figueirense» (...) O «Figueirense» é um jornal escripto para a Figueira, quasi em família; não faz portanto programma politico, nem cura por emquanto de politica”.
No programa editorial é dado igualmente grande destaque às condições geográficas da Figueira e à necessidade de modernizar o porto comercial, o único das Beiras e detentor da terceira maior fatia de tráfego portuário de Portugal Continental, segundo dados de 1862.
Em plena época da Regeneração, que remontava a 1850, os jornais de âmbito local e regional, onde está incluído o jornal O Figueirense, tiveram condições para crescer em quantidade e qualidade, a que muito se deve o desenvolvimento progressivo dos transportes e dos meios de comunicação.
Primeira série (1863-1864)
O jornal “O Figueirense” permaneceu no seu formato original até ao dia 3 de Janeiro de 1864, onde na ficha técnica passa a aparecer para além do nome do proprietário, Augusto Silvério de Oliveira, também o nome de A. J. da Silva Pereira, responsável da redacção. Em 31 de Julho de 1864 termina a primeira série com o número 52, ao fim de quase um ano de existência. Apesar do seu carácter efémero, convém não esquecer que a assunção do risco, valeu ao “O Figueirense”, na sua primeira série editorial, o estatuto de um dos mais antigos periódicos portugueses. Ao ser o primeiro jornal da Figueira da Foz, o mote estava dado para que outras publicações lhe seguissem o exemplo, num futuro próximo.
Existe na Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomaz (Figueira da Foz), uma colecção encadernada com todas os números da primeira série do Jornal, que tem na capa a inscrição “O Figueirense 1863-1864” e o nome do seu fundador, Augusto Silvério de Oliveira, doada por António Fernandes da Silva. A Biblioteca Nacional possui igualmente, na sua colecção patrimonial de periódicos, exemplares dos primeiros números do jornal “O Figueirense”.
Em finais do Século XIX verifica-se que o desenvolvimento das artes gráficas e da imprensa figueirense deve muito ao contributo de tipógrafos, impressores, editores e encadernadores, provenientes de Coimbra. Estes profissionais eram profundos conhecedores dos métodos e técnicas de impressão, pelo que representaram para a Figueira da Foz um efectivo crescimento – qualitativo e quantitativo - do volume de publicações impressas.
Segunda série (1900-1902)
A história da segunda série do Jornal “O Figueirense” começa a ser contada em 23 de Dezembro de 1899, quando a “Gazeta da Figueira” noticia superficialmente e com o título de “Novo Jornal” o seguinte: «A typographia onde se imprimia o nosso collega local “O Povo da Figueira” foi pelo seu proprietario (Amadeu Sanches Barreto) vendida ao sr. Prazilio Augusto Martins. Segundo ouvimos, em substituição do “Povo da Figueira”, que suspendeu a publicação, sairá um outro – “Echo da Figueira” – que parece ficará sendo o órgão do partido progressista da localidade, e que encetará a sua publicação nos começos do proximo ano (1900)».
O “Echo da Figueira” nunca chega a sair. Em seu lugar, no dia 21 de Janeiro de 1900, inicia-se a publicação da segunda série do jornal com o nome de O Figueirense, que assume doravante a nova característica de bi-semanário, mantendo uma linha conceptual independente. Esta série foi liderada pelo editor José Maria Roque dos Reis, oficial de encadernador, e pelo redactor Joaquim da Assunção Martinho, que vivia em Coimbra e cujo nome não constava da ficha técnica do Jornal.
Nesta época o Jornal era publicado na Tipografia Popular de Prazílio Augusto Martins (1870-1911), sede da administração e redacção, situada no Passeio Infante D. Henrique e cujas origens remontam ao ano de 1897. O Jornal adquirira agora um formato fólio de quatro páginas de cinco colunas.
Independência
O jornal "O Figueirense" no número um da sua segunda série, ao verificar que a Gazeta da Figueira tinha sido mal informada acerca da sua orientação política, enuncia no seu primeiro artigo, com o título de “A Nossa Atitude”:
«O Figueirense não é, como muitos poderão supôr, um jornal politico. Apresenta-se com caracter independente, sem sympathias por este ou por aquelle partido, e sem preferencias politicas por este ou por aquelle homem publico. Propõe-se a defender desinteressadamente os interesses da Figueira, a auxiliar o fraco contra o forte, quando a razão e a justiça estejam do seu lado, e sem atender a odios e inimizades politicas. A nossa divisa será a Justiça e a Verdade. Escudados pela Justiça, fustigaremos sem piedade os que o merecerem; se nos atacarem com as calumnias e com o insulto, responderemos com a verdade, que «muitas vezes doe mais que a mentira».
A Gazeta da Figueira veio porém a rectificar o seu lapso, na edição de 24 de Janeiro de 1900, pelo que o jornal, agradecendo as boas referências que foram dadas nessa edição, vai afirmando: «Como a Gazeta regista a nossa declaração de não querermos ser um jornal politico, é conveniente aclarar. Não seremos um jornal politico na accepção estreita, vulgar do termo, que na accepção geral não podemos deixar de o ser. Se algum dia quizessemos ser jornal “partidario”, declaralo-hiamos préviamente e com a maior lealdade. Não nos prestaremos a servir encapotadamente baixos interesses pessoaes ou de partidos».
Linha editorial
A verdadeira orientação editorial do jornal “O Figueirense” viria a ler-se nas entre linhas do artigo “Explicando”, escrito por Amadeu Sanches Barreto, que acompanhava o editorial do primeiro número da segunda série. Este artigo, datado de Alhadas (concelho da Figueira da Foz) em 14-1-1900, uma semana antes da segunda série começar a ser publicada, é complementar às ideias patentes na apresentação. Reveste-se de grande importância, porque fornece informações que muito interessam ao extinto jornal Povo da Figueira e prova, em primeiro lugar que o jornal “O Figueirense” surgira de novo nesta segunda série para o vir substituir.
Ainda que seguisse uma linha independente, o artigo “Explicando”, continua a delinear o meticulosamente o “retrato” do fundador, como é possível verificar no seu conteúdo: «Prazilio Augusto Martins é um daquelles caracteres que para se compreenderem é necessário tratá-los na intimidade. Trabalhador indefeso, intelligente, extremamente meticuloso em todos os pontos que possam tocar a sua dignidade, pode e deve fazer carreira com o “Figueirense”, se tiver quem o coadjuve efficazmente e o guie no escabroso mister de lançar um jornal à publicidade.
Dotado de ideias amplamente liberaes, democraticas mesmo, não se achando filiado em nenhum partido político, é de esperar que imprima a este jornal uma orientação justa, imparcial, fundada nos principios dos direitos e regalias populares.
Se não se póde dizer que o “Povo da Figueira” foi substituído por um jornal genuinamente republicano, é grande erro afirmar-se que as hostes monarchicas contarão mais um soldado na imprensa.
E para o demonstrar basta dizer que muitos dos colaboradores do jornal que elle vem substituir, continuarão a escrever para o “Figueirense”».
Recursos humanos
O novo “O Figueirense” defendeu, durante a sua existência, a causa democrática, ainda que não de forma tão directa como o jornal “Povo da Figueira” havia feito. “O Figueirense” foi, em todos os aspectos, um jornal que quis primar pela diferença, em busca de uma independência e meios de acção eficazes para a recepção e difusão da informação. Deste modo abriu as portas ao regime de correspondentes, que estavam espalhados em quase todas as freguesias do concelho da Figueira da Foz, em toda a região centro, centro-norte e centro-sul (distritos de Coimbra, Aveiro e Leiria), em localidades estratégicas do país, como Lisboa, Porto, Braga, Santarém, Almada e ainda na África Ocidental, onde residiam comunidades portuguesas.
Nesta época, foram colaboradores do jornal “O Figueirense” as seguintes personalidades: Amadeu de Sanches Barreto, João Barreto, Manuel Barreto, José da Silva Fonseca, Manuel Gaspar de Lemos, José Alves Miranda, Fortunato Correia Pinto, Joaquim de Assunção Martinho, Bernardo Teles Leitão, Henrique de Barros, Aníbal Taborda, R. Paganel, António Júlio Vale e Sousa, António Mira de Miranda e Brito, João Jacques, Arménio Monteiro, entre outros.
O editor José M. Roque dos Reis deixou de exercer a sua função a partir da edição número 180, de Domingo dia 20 de Outubro de 1901, como prova a declaração publicada nesse número do jornal. Foi assim substituído pelo proprietário, que tomaria o controlo absoluto do jornal até ao fim da segunda série. Em resultado de uma crítica insensata que o redactor do jornal dirigiu a um papel desempenhado pelo actor Ferreira da Silva, no Teatro Príncipe, na Figueira da Foz, Fernando Augusto Soares impôs-se à liderança de Prazílio Augusto Martins, o que vai levar à suspensão da segunda série.
Em 24 de Abril de 1902, Quinta-feira, termina a segunda série, com o número 225, ao fim do terceiro ano de edição.
Terceira série (1918)
A terceira série inicia-se em 15 de Fevereiro de 1918, com carácter bi-semanário, durante uma das suspensões do jornal Voz da Justiça, conforme consignado numa circular assinada por Manuel J. Cruz, de 15 de Janeiro de 1918, distribuída aos seus assinantes, que diz o seguinte: “Venho comunicar a V. Ex.ª que, tendo o meu jornal sido suspenso hoje, 15 do corrente, por ordem do delegado do atual governo neste concelho, fica a remessa para V. Ex.ª interrompida até que se normalize a actual situação”.
Tendo como director e editor Raimundo Esteves, o Jornal “O Figueirense” era propriedade da Empresa. A redacção, a administração e a impressão funcionavam na Tipografia Popular, de Manoel J. Cruz., publicando-se às Terças-feiras e às Sextas-feiras. O novo formato era do tipo fólio de quatro páginas, a seis colunas cada.
O artigo de apresentação refere o seguinte: «Saibam, pois, as gentes, que O Figueirense, é autenticamente, genuinamente um jornal novo, com todas as suas características. Aqui não se depende de ninguém, não se continua a vida de ninguém, não se obedece a quem quer que seja! Isto não está aforado. E quem aqui vive dentro, tem a mesma liberdade de acção que um pardal na larguesa vasta das asas...
Uma única coisa temos assente e firme: – não fazer política partidária! O resto será como Deus quiser e for servido!... Defender os interesses da nossa terra, lutar pelo bom nome, pelo engrandecimento da Figueira, é tão natural e tão intuitivo, tão claro, que até a gente escusa de dizê-lo, visto que o próprio nome do jornal é o mais bairrista possível.
Afirmar nesta hora grave para a nossa nacionalidade o nosso patriotismo, a admiração pelos que se batem na França e na Africa por Portugal, a fé ardente na vitória dos aliados, que é a nossa vitória, é escusado repeti-lo, tão naturalmente, tão firmemente tudo isto deve estar ligado à alma de todos os portugueses!
Acentuar o espírito de liberdade que sempre fulgirá em todas as nossas palavras é, então, perfeitamente desnecessário: – neste jornal, – de quem o escreve ao ambiente que se move, – toda a gente abomina o luar, porque só gosta do sol! ... E temos dito!»
Os colaboradores da terceira série foram, entre outros, Manuel Cruz, Ernesto Tomé, que escrevia as “Crónicas Perversas”, Manuel Gaspar de Lemos e o autor daquelas linhas, autor de um único artigo, que assinava pelo pseudónimo de Eça de Queiroz.
O jornal O Figueirense viria a terminar a publicação da terceira série em 29 de Março de 1918, com o número 13, após o término da suspensão ao jornal A Voz da Justiça, informação esta que foi dada por uma folha volante onde se podia ler: O Figueirense interrompe a sua publicação. Saindo das oficinas de “A Voz da Justiça”, e devendo reaparecer amanhã, terça-feira, 2 (de Abril), este jornal, impossível é continuar agora a publicidade do nosso bi-semanário.
1 de Abril de 1918.
Pela redacção do «Figueirense» – Raimundo Esteves.
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