quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Arco-íris musical

 Carlos Paião partiu há 20 anos, em sequência de um acidente de viação. A sua obra, essa, permanece.

Texto Sandra Silva fotografia EMI - Valentim de Carvalho

“Ontem, Carlos Paião dirigia-se para o Norte do País, acompanhado pelos colegas e amigos (…) Apenas Jorge Neves Esteves escapou com vida!”. Foi desta forma que o repórter Paulo Salvador, da RTP, dava a notícia da morte do senhor da música portuguesa dos anos 80.
Carlos Paião afirmava que preferia ser um bom músico a um mau médico. Este compositor, interprete, instrumentista e produtor musical morre num forte acidente a 26 de Agosto de 1988. Até à data, sempre cantara com a alegria, a sátira e o amor, tão bem transpostos por palavras melódicas nas suas composições. Apesar de curta, a sua vida foi intensa e repleta de êxitos. Criou em quantidade e qualidade canções profundas e reveladoras da sua visão do mundo.

Uma voz, uma influência, uma marca na nossa música, Carlos Paião deixou-nos quando ia a caminho de Leiria para mais um espectáculo. Pouco passava das 14h30 quando perto da Ponte da Amieira o acidente se deu. O motorista assustou-se ao desviar-se de um tubo de borracha que estava ao longo da estrada. Na manobra a carrinha do músico bateu de frente com um veículo pesado, que se desviava de um outro camião que estava parado na mesma via. Esta perda precoce gerou um boato de que Carlos Paião não estaria morto na altura do seu funeral, mas sim em coma.
Carlos Paião, que se fosse vivo teria hoje 50 anos, pincelou com os seus temas o panorama da música portuguesa com todas as cores da pauta musical da sua carreira, curta mas marcante, de pouco mais de 10 anos.
A perenidade das suas canções fazem-nos sentir que o seu desaparecimento se trata apenas de um “intervalo”[1] onde o recordamos com a eterna saudade portuguesa. “A amizade é tudo o que fica depois das teias da lei. Por isso, até qualquer dia, que da vossa simpatia nunca mais me esquecerei!”[2] Nem nós por aqui.

[1] Nome do álbum que Carlos Paião deixou incompleto, acabando por ser editado em Setembro do mesmo ano da sua morte. [2] Palavras de Carlos Paião.

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quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Chama Olímpica

Originalmente, as Olimpíadas, reservados a peloponesos, tinham um culto místico e duravam um dia. Relembramos a sua evolução a partir de “A fabulosa história dos Jogos Olímpicos

Texto e desenho Dina Cristo

Os Jogos Olímpicos decorriam, de quatro em quatro anos, na Lua Cheia depois do Solstício de Verão, num estádio, interdito às mulheres (a prova era realizada com os atletas nus) ao lado de um Santuário, Olímpia, onde se celebrava o culto de Zeus. Teoros Eleus percorriam o mundo a anunciar a proximidade dos jogos que desfrutavam de uma aura sagrada e um ambiente de profunda religiosidade. O objectivo da celebração era a prosperidade e a paz e mesmo em tempo de guerra se faziam tréguas.
O vencedor tornava-se um herói, tinha direito a uma estátua no Templo de Zeus, e direitos e obrigações muito além do comum. O facto de vencer tornava-o mais perto dos deuses e perene, menos mortal. O primeiro vencedor conhecido foi Corebo em 776 a.C.
Os primeiros jogos de que há memória realizaram-se em 884 antes de Cristo. Até à dominação romana, que retirou a sua essência religiosa, foram-se acrescentando muitas provas desportivas, como corridas, e alargando o tempo do evento e os participantes aos restantes estados gregos.
Depois de quinze séculos adormecidos, as Olimpíadas renascem na Era Moderna, na Grécia, pela mão de Pierre de Fredy, barão francês de Coubertin, (1863-1937). No dia 6 de Abril de 1896 eram 285 atletas, 196 dos quais gregos, numa reunião de 14 nações. Sessenta mil espectadores encheram o Estádio (reconstruído) de Péricles, em Atenas. O vencedor, camponês e guardador de rebanhos, havia-se preparado com orações e jejum.
Estavam restaurados os jogos e o culto de uma confraternização universal. O desporto era visto como um elo de ligação entre os homens e uma reacção aos desentendimentos nacionais. Vencer era secundário.

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Jornalismo (e) audiovisual VI

Após uma interrupção, devida ao artigo contínuo sobre IS, retomamos hoje o ensaio com o filme, central na investigação, que nos coloca perante uma escolha: o espectáculo, superficialidade, encenação e igorância ou a cultura, profundidade, rigor e a ética.

Texto Dina Cristo

O que “Broadcast News” nos diz é que, para se ser bem sucedido no mundo da televisão, basta dominar as técnicas televisivas, apresentar as notícias muito profissionalmente e ter uma cara bonita. Inteligência é característica da qual se pode prescindir para ser vedeta.
É o cinema, mais uma vez, a reflectir e a ser, ao mesmo tempo, um reflexo do tempo e do espaço onde é realizado… No caso concreto, os Estados Unidos e o final da década de 80. Um contexto que se pode alargar a uma vasta área geográfica, onde as mesmas preocupações (a informação transformada em espectáculo sujeito às tabelas de audiência e o carisma do locutor a sobrepor-se à pertinência das notícias) se colocam, nomeadamente em Portugal.
Retrato dos personagens
Tom, Aaron eJane desempenham três dos serviços fundamentais em televisão: a apresentação, a reportagem e a produção. Complementares nas suas funções diferentes, demonstram enquanto crianças as características que os distinguirão mais tarde como profissionais.
Tom, com dificuldades em termos de percepção e assimilação de conhecimentos, vai contar com dois factores coadjuvantes: a beleza e a sua determinação. Posteriormente, revela-se um indivíduo sem conteúdo, que não entende o que lê, mas que, por mera sorte, vai subindo até atingir o estrelato. Ele próprio se auto-retrata: não é educado, quase não tem experiência, não escreve e, no entanto, foi admitido na estação televisiva, ganhando uma fortuna.
Bastante diferente, Aaron possui uma cultura geral profunda (terminou o liceu aos 15 anos, com distinção), mas uma fisionomia que pouco o favorece. Forte conhecedor da actualidade, dominando-as como ninguém, será um repórter experiente, capaz de redigir textos belíssimos, mas muito pouco eficaz na utilização das mais elementares técnicas da linguagem televisiva.
Jane mostra-se uma pessoa de carácter forte, seguro e inteligente, características que farão dela uma produtora rigorosa, perspicaz e enérgica. Empenhada na qualidade poucas, lutará para que a ética profissional seja permanentemente respeitada – orientação da qual nunca se desviará um milímetro – atitude que lhe trará algumas amarguras.
«O noticiário passa a espectáculo oferecido aos espectadores por uma “estrela”, ao mesmo tempo que as verdadeiras notícias (…) passam ao lado»[1]. Eis, em resumo, duas concepções que vão estar na base de todo o conflito entre Tom – adepto da promoção do espectacular – e Aaron – a favor da valorização do conteúdo informativo. Entre ambos está Jane, defensora permanente da ética e eficácia televisiva. São diferentes formas de conceber e praticar jornalismo, que vão reflectir-se, necessariamente, no trabalho de cada um.
Trabalho da estação
Durante a elaboração do apontamento final sobre o soldado que regressa aos EUA, Jane e Aaron dão um bom exemplo de como o profissionalismo a nível individual pode contribuir para um bom trabalho de equipa. Jane conhece bem a peça (tanto que a memorizou) e, apesar dos escassos 14 minutos de que dispõe, teima em incluir na montagem o “homecoming” de Norman Rockwell. Uma relação de trabalho que se complementa de forma excelente, como prova o pequeno diálogo na redacção: “Queres o comentário?”; “Sim, de 15 segundos”. O resultado é um texto que explica as imagens e não estas que ilustram o texto.
Graças ao alto sentido de responsabilidade, com a preparação a ser feita com a devida antecedência, as exigências sobre um operador de câmara que filma mesmo sem luz, e a competência de Aaron, a reportagem da Nicarágua revela-se um êxito. No exacto momento em que começa o bombardeamento, Aaron faz um improviso no qual demonstra estar por dentro de toda a situação: «Os primeiros tiros soaram há 10 segundos. Os “contras” estão em minoria. São uma unidade pequena. Apesar disso, defendem as suas posições com armas que enervam e não disparam. Só receberão novo fornecimento de armas amanhã. Hoje, tudo o que têm são as suas botas». E mal as luzes se apagam, ainda em pleno tiroteio, a maior preocupação de Aaron é saber se há imagens das botas.
Numa coerência total entre o que defende e o que pratica, Jane, perante o pedido do operador de câmara para que um soldado calce as botas, grita: “Pára! Não estamos aqui para criar notícias. Façam o que têm a fazer. As decisões são vossas” – uma frase arrebatadora para uma luta nem sempre fácil entre a verdade e o pseudo-acontecimento.
De qualquer forma, enquanto Jane estiver presente, não dará tréguas aos que investem na fabricação e encenação de imagens. Com a produtora por perto, tudo se pautará pelo maior respeito pelos factos, pelo que efectivamente acontece, e não por atitudes solicitadas, sugeridas ou mesmo provocadas.
Autor de um bom texto e com um conhecimento perfeito da actualidade, Aaron vem a revelar-se no jornal de fim-de-semana, um total fracasso televisivo. À falta de uma imagem atraente e uma presença forte, junta-se-lhe uma insegurança, um ataque de transpiração e uma incapacidade de domínio das técnicas audiovisuais perante a câmara a dificultarem a exteriorização da sua credibilidade.
Uma situação totalmente oposta a esta é como se pode caracterizar a apresentação das reportagens sobre o avião líbio. Sem compreender o assunto que apresentava, mas descontraído, na posse de uma imagem persuasiva, de um contacto com a câmara convincente e de um texto (inclusive perguntas e ‘dicas’) a cargo de Jane e até de Aaron, Tom, que mais não fez do que dar a cara, transmitia a imagem de um profissional credível.
Bem reveladora da forma como Tom encara a profissão, é a reportagem sobre violações em que decide, após o seu terminus, fabricar a sua reacção, provocando algumas lágrimas com uma cebola. Uma encenação de emoções que vai aprofundar o fosso com Jane, entre o que é quotidianamente rentável e o que é eticamente correcto.
Questões éticas
Tom, ao encenar a sua reacção com a queda de lágrimas, põe em causa uma das principais “bandeiras” agitadas por Jane – o respeito pelos factos, a exigência de se captar apenas aquilo que acontece sem forçar ou provocar voluntariamente qualquer atitude ou comportamento. Exactamente ao contrário, Tom fez parecer autênticas lágrimas que, na verdade e apesar da ligeira perturbação que sentiu, não chegaram a cair, além de que, após acontecerem, já não seriam reais, mas sim reconstituídas.
Condenada por toda a gente e ao mesmo tempo por todos aceite como praticamente inevitável, a visão comercial da informação e a sede de vedetismo, protagonizada por Tom, constituem igualmente dois dos temas mais abordados.
Encaradas as notícias como meros produtos de que o jornalista é o vendedor por excelência, Tom é o protótipo do apresentador eficaz nesta sua “missão” de promotor. Assim, além dos requisitos necessários do produto (ser sedutor e atractivo), o seu agente de comercialização não se deverá negar, se necessário for, à venda da sua própria imagem. Para tal, monta-se toda uma estratégia de marketing, preocupada com o consumo efectivo do produto (a audiência do programa) e sacrificando, se preciso for, um conteúdo consistente por uma embalagem tão bela quanto falsa.
Apesar da sua confessada incapacidade para dominar a actualidade (e não só), Tom assume gradativamente o papel de grande vedeta. Requisitado primeiro, reconhecido depois, promovido mais tarde e aclamado no final – são as suas reportagens e “discursos” que obtêm aprovação por parte do público que parece preferir a forma ao conteúdo.
Uma opção que parece satisfeita pela própria estação de televisão. Ao apostar em Tom em detrimento da já comprovada capacidade, conhecimento e experiência de Aaron, aquela “network” ajuda a consolidar a primazia do superficial sobre o profundo. Uma questão vital para Jane: “Sei que é divertido. Eu gosto de me divertir. Só que isto não são notícias”, refere-se no congresso, a propósito de um apontamento sobre animais, apresentado em detrimento de uma mudança política importante e relacionada com o desarmamento nuclear.
Jane e Aaron, sempre críticos e atentos, constituem uma reserva de bom senso numa redacção que, apesar disso, opta pela via de acesso directo ao lucro (através dos “itens” que lhe permitem as grandes audiências) terminando por premiar o carisma do locutor em prejuízo do conteúdo das notícias. Inserida no mercado competitivo, a estação relega os valores e oferece ao público o que este gosta. Tom, com a sua capacidade de sedução e telegenia, faz parecer que a cultura, nesta profissão, é uma condição de somenos importância e que os atropelos à ética, passíveis de repreensão, são afinal, um belo “trampolim” para o mundo das estrelas.
No final, Aaron transfere-se para uma estação local enquanto Tom é promovido com a atribuição de um lugar para Londres. Moral da história: melhor esteve quem trocou a responsabilidade pela excitação e se preocupou mais em escolher a cor da camisa do que em preparar um bom texto. Como afirma Marie Christine, da revista Séquence, “Broadcast News” «mostra que o jornalista bem sucedido não é aquele que tem o sentido da notícia, mas sim o sentido do espectáculo».
Pode, então, dizer-se que estamos do domínio da ficção pura? Não são estas personagens protótipos dos actuais profissionais e não é aquela redacção uma ‘bela’ amostra do que se passa em muitas estações de televisão?
Veremos, nos artigos seguintes, como “Broadcast News” se aproxima da vida real.

[1] LOURENÇO, Frederico – Broadcast News/1987.

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quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Borderline


Mercado Sali Pazaar
Num momento de férias para muitos, propomos a segunda parte de uma crónica sobre um bairro turco, Tarlabasi, com a sua riqueza cultural, tradições, estigmas, rotinas, problemas e novos desafios. Um contributo para uma aproximação ao mundo islâmico, objectivo da Aliança das Civilizações, criada há três anos.

Texto e fotografia Susana Nunes

Istambul é, sem qualquer dúvida, uma cidade profundamente marcada pela multiculturalidade. Não, mais do que isso. Istambul é mais do que uma simples mistura de culturas. Basta percorrermos as suas ruas para a vivermos, para a sentirmos. Istambul é uma cidade que invade e se entranha na alma das pessoas, sem pedir licença e sem aviso prévio, transformando esta “multiculturalidade” num aglomerado único, em que a individualidade da cidade se impõe à individualidade de cada um.
Mas Istambul é também uma cidade que vive a dois ritmos completamente distintos, onde coabitam diferentes realidades. Apesar de a alma de Istambul ser omnipresente, existem várias comunidades e bairros quase fechados, que chegam mesmo a ser hostis a estranhos. O mais extraordinário é quando todas estas definições se aplicam a um único bairro. Apesar de Tarlabasi ser uma comunidade extremamente fechada, estranhamente, é também um bairro repleto de diferentes culturas que aprenderam ou que são obrigadas a partilhar o mesmo espaço.
Uma vez mais, o meu prédio não poderia ser melhor exemplo deste peculiar fenómeno: para além da excepcional família curda, vivíamos ainda com uma família de japoneses, Julie, uma empresária francesa, e Michael, um professor britânico homossexual. Obviamente, nenhum destes vivia em Tarlabasi com o mesmo à vontade que os nossos vizinhos curdos. Da família de japoneses, só o pai saía de casa para ir trabalhar (nunca cheguei a ver a mãe, pois nunca saía nem abria a porta a estranhos sem o marido estar presente). Julie, a empresária francesa, nunca passava muito tempo em Istambul por causa dos negócios, mas visitava-nos após cada regresso. Penso que nunca se chegou a sentir completamente em casa nesta cidade e que falar um pouco connosco tornava a situação mais fácil. Partiu no primeiro dia do ano, deixando-nos uma garrafa de champanhe, e nunca mais regressou. Michael é o típico britânico, extremamente educado e organizado e que se enquadra no contexto turco, claramente, como um peixe fora de água. Nunca conseguimos perceber porque escolheu um país tão conservador para ensinar. Renovou de tal forma o seu apartamento que ninguém conseguiria encontrar uma única semelhança com o nosso e, muito menos, com o da família curda. Não, estou uma vez mais enganada. Houve algo que Michael não pôde mudar, mesmo não combinando em nada com o novo estilo e com a decoração moderna do seu apartamento, e que continua e continuará a ser igual para todos os habitantes deste prédio em Tarlabasi e de muitos outros prédios de Istambul: o “buraco”.

Enclaves

Em Istambul, "o buraco” é um fenómeno tão significativo que Orhan Pamuk, em O Livro Negro, lhe dedica um capítulo inteiro
[1]: “Les jours où toute la famille allait dîner à l’étage du grand-père, la bonne utilisait le puits d’aération pour annoncer, en criant de tout sa voix, à ceux de l’étage d’en bas et aussi à tous les locataires de l’immeuble voisin, que le dîner était prêt. Les soirs où ils n’y avaient pas été conviés, la mère et le fils, relégués au dernier étage, lançaient de temps à temps un regard par la fenêtre, qu’ils tenaient ouverte, de leur cuisine, pour épier les plats du menu et les intrigues d’en bas.", p. 332.
De facto, ainda não sei ao certo com que finalidade, talvez para depósito do lixo, mas, nesta cidade, muitos prédios foram construídos com um buraco quadrangular no centro. Um buraco vertical, de cerca de três m2 de largura, cuja única abertura para o exterior se situa no topo do prédio, e para o qual todos os apartamentos dispõem de duas ou mais janelas. Apesar de actualmente não ter qualquer função específica, a quantidade de janelas concentradas num espaço tão fechado (no nosso apartamento, por exemplo, tanto a cozinha, como a sala e um dos quartos só tinham vista para “o buraco”) leva a que este, necessariamente, faça parte do dia-a-dia e da vida de cada apartamento e de toda a comunidade do prédio. É através do buraco que as mães gritam pelos filhos para que venham almoçar ou jantar, é para o buraco que inexplicavelmente alguém atira água de vez em quando. É no buraco que vive uma larga família de ratazanas, que passamos horas a observar, num misto de terror e de fascinação.
Para além do “buraco”, este prédio possui ainda outros dois espaços comuns: a cave, onde penso que, exceptuando todos os gatos da vizinhança, ninguém entra há anos, dado o odor pútrido e nauseabundo que daí provem, e o local onde passei várias tardes encantadoras, o terraço. Embora seja um local praticamente esquecido, bastante sujo e a precisar urgentemente de obras, a velha cadeira de baloiço e a impressionante vista, de um lado o aqueduto e o Bósforo, do outro Tarlabasi, fazem com que este terraço se torne num local mágico, onde, perante a dimensão da cidade, qualquer pessoa se sente tão pequena como uma formiga, mas extremamente privilegiada, simplesmente por ter a oportunidade de observar Istambul.
Obviamente, não sei o que o futuro me reserva, mas penso que o dia-a-dia no nosso pequeno apartamento em Tarlabasi foi e continuará a ser um dos períodos mais marcantes da minha vida. Viver em Tarlabasi é viver em constante estado de alerta, sem deixar de se ser surpreendido todos os dias. É estar-se sempre prevenido, sem deixar de se ser apanhado desprevenido.
Ainda hoje penso nos pobres homens que trabalham dia e noite num buraco (um outro tipo de buraco) do apartamento da frente, onde acumulam todo o tipo de sucata, móveis e velharias. Uma cave escura e muito suja, na qual, por vezes, só se vêem os seus pequenos olhos a brilhar. É impossível ficar-se indiferente a estas pobres vidas que se esgotam ao ritmo do vai e vem de objectos alheios. Todos os dias, a chegada e a partida de mercadorias provoca alguma azáfama no bairro, sobretudo quando se descobrem pequenas relíquias, como uma antiga máquina de escrever, que tanto apaixonou um dos meus colegas de casa, um jornalista espanhol.
Esta cave, “o buraco da frente”, como lhe chamávamos, é um local misterioso e difícil de compreender, como muitos outros em Istambul. Pela nossa observação diária, os objectos e materiais que chegam são muito mais do que os que partem. Todos os dias, os “homens da cave” carregam tudo e mais alguma coisa para este local. Para mim e para muitos outros habitantes do bairro, esta cave é como um buraco sem fim, labiríntico, constituído por diversas galerias, repletas de relíquias e tesouros antigos. Curiosamente, esta ideia é um pensamento comum relativamente a Istambul. Dada a sua riqueza histórica, muitos são os mistérios que assombram esta cidade e várias são as lendas e histórias sobre túneis e catacumbas que percorrem e interligam o coração desta cidade. Apesar de tudo, não é difícil de se acreditar nesta possibilidade, sobretudo quando é do conhecimento geral que sempre que se abre um buraco na zona histórica da cidade se encontram novos artefactos e relíquias de diferentes períodos. Tendo em conta que Istambul é uma cidade conhecida pela sua colossal riqueza histórica, é perturbante imaginar tudo o que se pode encontrar soterrado sob as suas ruas, os seus monumentos, as casas, os mercados… Como exemplifica a edição de 27 de Maio de 2008 do jornal Le Monde (p. 3), “o túnel ferroviário que ligará daqui a uns anos as duas margens de Istambul, passando por debaixo do Bósforo, permitiu a descoberta de centenas de objectos datando da época bizantina, mas também da época otomana, e de diversos pontos históricos de grande importância. Vestígios do neolítico, um porto bizantino, um pedaço de 50 metros das muralhas de Constantinopla, nunca antes encontradas nesta área, já emergiram no local. Desde há quatro anos que mais de 70 arqueólogos e de 700 trabalhadores estão em actividade dia e noite.”. E, tudo isto, no centro de Istambul.

Divisão

No entanto, não é com o curioso agregado de roedores que habita o buraco que termino a lista de moradores do nosso prédio. Embora tenha sido a família curda quem mais me marcou, deixei para o fim um grupo que é, sem dúvida, o mais relevante: no primeiro andar do prédio encontra-se situada a sede do DTP, o Partido Sociedade Democrática, um partido de esquerda, pró-curdo, isto é, que defende a criação de um Estado curdo, independente, no Curdistão (região dividida nas fronteiras da Turquia, do Irão, do Iraque e da Síria).
Apesar de todos termos bem noção que qualquer movimento pró-curdo é regularmente alvo de represálias e de atentados, nunca tive grandes preocupações a nível de segurança, até ao dia em que acordei às quatro horas da madrugada com um grande estrondo. Ainda tive tempo para pensar na possibilidade de estar a sonhar, mas imediatamente comecei a ouvir vidros a partir e vozes perturbadas. Apesar de Istambul não ser uma cidade nada silenciosa, não tive dúvidas de que algo grave se tinha passado e decidi acordar toda a gente, just in case. Saía fumo pelas janelas do primeiro andar e a rua estava repleta de pessoas assustadas. Os bombeiros não tardaram a chegar e o rumor de que o escritório do DTP tinha sido alvo de um atentado com um cocktail molotov espalhou-se por todo o bairro ainda mais rapidamente.
Evidentemente, ninguém pregou olho nessa noite e a possibilidade de novos atentados assombrou muita gente. Fui trabalhar na manhã seguinte e mal pude acreditar no que vi quando regressei a casa. Em vez de começarem a actuar de forma mais discreta ou de planearem retaliações, os membros do DTP decidiram responder ao atentado da maneira mais aterrorizadora que poderiam ter encontrado: organizando uma enorme festa e convidando todos os curdos do bairro.
No nosso apartamento, a semana seguinte foi de pânico constante. O estado de alerta geral traduziu-se pelo silêncio e, ao mínimo barulho, os nossos corações disparavam e o sobressalto invadia-nos. Para piorar a situação, o prédio não tinha caixas de correio e os envelopes ou encomendas eram deixados no rés-do-chão até que o destinatário os visse. Durante várias semanas não nos saiu do pensamento que, qualquer que fosse a resposta à provocação, seria certamente mais grave que um cocktail molotov. Ainda hoje me custa a acreditar que a festa não provocou retaliações. Ainda hoje não sei como é que os opositores engoliram a afronta e a ousadia mas sinto-me profundamente agradecida por tal ter acontecido.
É importante lembrar que esta é uma questão extremamente sensível para a Turquia, país onde existe uma comunidade de 11 a 15 milhões de curdos, considerada pelo governo como uma ameaça à segurança nacional do país. A palavra “genocídio” é tabu e completamente condenada pelo governo, mas não é difícil de a encontrar no olhar de cada turco. Aziz, um colega de faculdade, nunca conseguiu deixar de se sentir assombrado por este fantasma e contou-me que planeava fugir para a América do Sul, para escapar ao serviço militar. Sinan, um outro colega e uma pessoa extremamente simpática e trabalhadora, esteve preso durante algum tempo. Nunca me contou porquê, mas corria o rumor de que foi condenado por participar numa manifestação pró-curda. Desde sempre que os curdos têm resistido às tentativas de assimilação forçada por parte do governo turco. Mesmo após a supressão da sua língua e a abolição das palavras “curdo” e “Curdistão” dos dicionários e décadas de incentivo ao uso do turco, a maior parte continua a falar a língua curda. E este é um facto que em Tarlabasi não passa despercebido.

Cidade karisik

Para além do vaivém das mercadorias do “buraco da frente” e dos casamentos ciganos, eventos que provocam o caos durante quatro dias no mínimo, a azáfama é uma constante na nossa rua: os miúdos que jogam à bola e sonham em vir a ser grandes estrelas do futebol turco, as miúdas que jogam à macaca e que olham com curiosidade os estrangeiros, as mulheres que passam a tarde sentadas nas escadas dos prédios, a conversar e a observar a vizinhança, ao mesmo tempo que preparam os vegetais para o jantar… E que, pelo menos uma vez por mês, trazem as suas belas carpetes para a rua, onde as lavam e esfregam, sem se preocuparem com o trânsito ou com quem passa.
Neste mesmo espaço, é impossível não se reparar também na enorme quantidade de gatos que vagueiam pelas ruas, desfrutando do sol e da simpatia de quem passa. Apesar de não existir qualquer explicação lógica, os turcos têm uma relação bastante próxima com os gatos vadios, permitindo que estes ocupem qualquer espaço inabitado e alimentando-os regularmente. Na rua, várias vezes me deparei com taças de ração para gato e, surpreendentemente, sobretudo nos bairros mais pobres. Para além disso, numa cidade onde a circulação rodoviária é gerida pela lei do mais forte e onde é extremamente difícil ser-se um peão ou ir-se a algum lado de bicicleta, cheguei a ver o trânsito parar por completo apenas para que um gato pudesse atravessar a rua. Ninguém sabe explicar este fenómeno, e há mesmo quem o negue, mas a verdade é que, na Turquia, os gatos beneficiam de um estatuto bastante privilegiado.
Apesar de Istambul se “modernizar” e “ocidentalizar” um pouco mais a cada dia que passa, a vida na maior parte dos bairros ainda gira exclusivamente em torno do comércio local e dos vendedores ambulantes. Na minha rua, por exemplo, todos os dias por volta da hora em que terminam as aulas, ouve-se apregoar ao longe “SAHLEP, SAHLEP, SAHLEP!!!” (uma bebida quente feita à base de raízes de orquídeas). A voz vai-se aproximando, percorrendo cada viela, repetindo o pregão incansavelmente, até se afastar e deixar de se ouvir por completo.
Para além do “negócio do buraco da frente”, existe também um vendedor de frutos ambulante (que raramente sai do mesmo sítio) e um outro local bizarro, uma loja inicialmente repleta de ovos praticamente até ao tecto, actualmente transformada num atelier de exposição de fotografias. No entanto, o coração do comércio local encontra-se numa pequena loja típica, onde, como na maior parte das lojas turcas, se pode encontrar e comprar de tudo. O mais curioso é que esta loja está aberta 24 horas por dia e é gerida apenas por dois irmãos curdos, que se revezam, dormindo no camião estacionado do outro lado da rua. Neste tipo de lojas, algo que imediatamente se descobre é que a palavra é mais importante do que o dinheiro. Por exemplo, apesar de cada fruto ter um preço diferente, ao quilo, na altura de pagar, todos os sacos são pesados ao mesmo tempo e o preço total é calculado de forma quase aleatória, sem recurso a qualquer instrumento de cálculo. Embora difícil de se compreender e de se aceitar, o comércio turco baseia-se sobretudo na interacção imediata entre o vendedor e o cliente. O vendedor pode estipular um preço com uma margem de mais de 70% de lucro ou de apenas 5%, por exemplo. Sinceramente, à excepção de quando se espera que o cliente regateie o preço, nunca consegui decifrar os critérios que levam a um preço ou ao outro.
No entanto, apesar de todas as dificuldades de comunicação, acabei por chegar à conclusão de que, para mim, um dos maiores problemas de viver em Tarlabasi, não foi o convívio com a população local, mas sim os preconceitos existentes em relação a este bairro. Por exemplo, Istambul é uma cidade cujas reservas de água potável são insuficientes, por isso, verificam-se frequentemente cortes temporários no abastecimento de alguns bairros, sobretudo no Verão. Tendo em conta a reputação de Tarlabasi, obviamente, este é o primeiro bairro a sofrer com este problema. Há bens essenciais que tomamos como adquiridos e cujo valor só descobrimos em caso de verdadeira necessidade. Após três dias sem uma única gota de água a correr pelos canos, a meio de um Verão abrasador e extremamente seco, saí de casa pela manhãzinha, entrei num dos melhores e mais modernos cafés da Istiklal, Mado, pedi um pequeno-almoço e ocupei a casa de banho durante meia hora. Nem senti a falta de um chuveiro, o lavatório chegou perfeitamente para me voltar a sentir uma pessoa de novo. Normalmente, quando pensamos em falta de água, a primeira ideia que nos passa pela cabeça é sede. Neste caso, dispondo de água engarrafada para beber e cozinhar, o grande problema foi viver com mais cinco pessoas e partilharmos todas a mesma casa de banho.

Todas as minorias

Não posso concluir este modesto retrato do bairro turco onde vivi durante cerca de um ano, sem fazer referência a um outro fenómeno que bastante me intriga, ainda hoje, sobre uma outra comunidade que procurou abrigo em Tarlabasi. À noite, quando já não se vêem mulheres de véu nem crianças, as ruas deste bairro invadem-se de travestis. Estes constituem, sem qualquer dúvida, uma grande comunidade e muitos turcos e mesmo estrangeiros consideram Tarlabasi como o centro da procura/venda de sexo em Istambul, cidade onde existem cerca de 20 mil travestis. Como refere Deniz Kandiyoti no artigo “Transsexuals and the Urban Landscape in Istanbul”
[3], em Tarlabasi, os transexuais são membros de uma cultura local com consciência própria, que desenvolveu o seu próprio vocabulário. Até 1996, os travestis constituíam uma comunidade relativamente estável, baseada numa rotina bem estabelecida de protecção e subornos. No entanto, nesse ano, Istambul recebeu a conferência Nações Unidas Habitat II, "A Cimeira da Cidade", o que levou a uma massiva operação de limpeza de vários bairros, atingindo profundamente a comunidade transexual.
Ainda segundo Kandiyoti, poucos grupos sociais receberam tanta visibilidade e atenção mediática como os transexuais (de homem para mulher) receberam na Turquia nestes últimos anos: “parte da fascinação em torno dos transexuais está, sem dúvida, relacionada com o desconforto que causam na moralidade e nos conceitos dominantes sobre sexo e identidade. Numa sociedade que preza a masculinidade e que possui diversos tabus em relação à expressão da sexualidade feminina, os travestis ostentam com uma vaidade agressiva o estilo feminino e habitam geralmente um submundo sombrio de diversão e de prostituição”.
É de salientar que, contrariamente à maior parte dos países islâmicos, a Turquia é um país cuja legislação permite cirurgias de mudança de sexo e relações homossexuais. Em 1988, foi promulgada uma lei que legaliza a mudança de sexo através de cirurgia, baseada no precedente de Bülen Ersoy, curiosamente uma das cantoras mais adoradas da Turquia, que apelou em tribunal o reconhecimento da sua identidade como mulher, após uma operação de mudança de sexo, em Londres.
Apesar de Tarlabasi continuar a ser o bairro das minorias e dos indesejáveis, as frequentes perseguições e a pressão constante por parte das autoridades, fazem-me pensar que estes dias podem estar a chegar ao fim. Existe uma nova elite que está a redescobrir a antiga beleza de Istambul e o seu legado histórico, do qual faz parte Tarlabasi. No passado, as antigas casas de madeira, do estilo otomano, foram negligenciadas e, por vezes, demolidas ou queimadas (o que é excepcionalmente descrito por Orhan Pamuk em Istanbul: Memórias de uma cidade), para darem lugar a estradas ou blocos de apartamentos “rentáveis mas sem alma”. Actualmente, o boom do aumento do valor das propriedades já se começou a sentir até neste bairro (o que provavelmente levou a que fosse lembrado pelo governo), o que acabará por levar a um novo êxodo, provavelmente para os subúrbios da cidade. No fundo, o verdadeiro problema apenas será geograficamente afastado.

[1] Éditions Gallimard, 1995. [2] Karisik (karışık): mista, misturada. [3] Edição 206 do Middle East Report.

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quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Figueira: raízes dos frutos jornalísticos

Comemora-se este Sábado a primeira edição de “O Figueirense”, um dos mais antigos jornais portugueses. Neste artigo recordamos as primeiras três séries do periódico, com início em 1863, 1900 e 1918.

Texto e fotografia Luís Manuel Martins

O jornal “O Figueirense” é uma publicação com uma longa história. Fundado em 9 de Agosto de 1863 por Augusto Silvério de Oliveira (1827-1902), um abastado industrial regressado há poucos anos do Brasil, era então um jornal semanário impresso na Tipografia Figueirense que marcara o alvorecer da imprensa jornalística na Figueira da Foz. A Tipografia Figueirense foi criada em 1862 pelo mesmo proprietário de “O Figueirense” e situava-se na Rua da Oliveira, junto ao Largo do Carvão, em pleno centro da então vila da Figueira da Foz, que só viria a ser elevada a cidade por ocasião da visita real de D. Luiz I, em 1882. O equipamento de impressão era, porém, muito rudimentar e os recursos humanos escasseavam.
O jornal tinha o formato in-fólio com quatro páginas e três colunas. O primeiro número foi impresso em papel de várias cores, nomeadamente em branco, verde, azul e cor-de-rosa, de forma a captar a atenção do público. O preço de assinatura era, à data da primeira edição, de 2.000 réis por ano e 1.200 por semestre. Os anúncios custavam 20 réis por linha, enquanto que os comunicados e as correspondências de carácter particular tinham o custo de 10 réis.
Conceito
A estratégia comercial de “O Figueirense” passou por um interessante e ambicioso desafio de defesa dos recursos da Figueira da Foz e uma proximidade do público, preconizando ainda uma importante meta para a objectividade – o distanciamento político, tal como deixam entrever as linhas do programa editorial saído no primeiro número do jornal:
“Advogar os interesses da terra que o vio nascer; empregar toda a actividade, todos os esforços da sua intelligencia na consecução progressiva dos seus diversos melhoramentos e na satisfação das suas variadas e multiplices necessidades, é o fim a que se dirige o «Figueirense» (...) O «Figueirense» é um jornal escripto para a Figueira, quasi em família; não faz portanto programma politico, nem cura por emquanto de politica”.
No programa editorial é dado igualmente grande destaque às condições geográficas da Figueira e à necessidade de modernizar o porto comercial, o único das Beiras e detentor da terceira maior fatia de tráfego portuário de Portugal Continental, segundo dados de 1862.
Em plena época da Regeneração, que remontava a 1850, os jornais de âmbito local e regional, onde está incluído o jornal O Figueirense, tiveram condições para crescer em quantidade e qualidade, a que muito se deve o desenvolvimento progressivo dos transportes e dos meios de comunicação.

Primeira série (1863-1864)

O jornal “O Figueirense” permaneceu no seu formato original até ao dia 3 de Janeiro de 1864, onde na ficha técnica passa a aparecer para além do nome do proprietário, Augusto Silvério de Oliveira, também o nome de A. J. da Silva Pereira, responsável da redacção. Em 31 de Julho de 1864 termina a primeira série com o número 52, ao fim de quase um ano de existência. Apesar do seu carácter efémero, convém não esquecer que a assunção do risco, valeu ao “O Figueirense”, na sua primeira série editorial, o estatuto de um dos mais antigos periódicos portugueses. Ao ser o primeiro jornal da Figueira da Foz, o mote estava dado para que outras publicações lhe seguissem o exemplo, num futuro próximo.
Existe na Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomaz (Figueira da Foz), uma colecção encadernada com todas os números da primeira série do Jornal, que tem na capa a inscrição “O Figueirense 1863-1864” e o nome do seu fundador, Augusto Silvério de Oliveira, doada por António Fernandes da Silva. A Biblioteca Nacional possui igualmente, na sua colecção patrimonial de periódicos, exemplares dos primeiros números do jornal “O Figueirense”.
Em finais do Século XIX verifica-se que o desenvolvimento das artes gráficas e da imprensa figueirense deve muito ao contributo de tipógrafos, impressores, editores e encadernadores, provenientes de Coimbra. Estes profissionais eram profundos conhecedores dos métodos e técnicas de impressão, pelo que representaram para a Figueira da Foz um efectivo crescimento – qualitativo e quantitativo - do volume de publicações impressas.

Segunda série (1900-1902)

A história da segunda série do Jornal “O Figueirense” começa a ser contada em 23 de Dezembro de 1899, quando a “Gazeta da Figueira” noticia superficialmente e com o título de “Novo Jornal” o seguinte: «A typographia onde se imprimia o nosso collega local “O Povo da Figueira” foi pelo seu proprietario (Amadeu Sanches Barreto) vendida ao sr. Prazilio Augusto Martins. Segundo ouvimos, em substituição do “Povo da Figueira”, que suspendeu a publicação, sairá um outro – “Echo da Figueira” – que parece ficará sendo o órgão do partido progressista da localidade, e que encetará a sua publicação nos começos do proximo ano (1900)».
O “Echo da Figueira” nunca chega a sair. Em seu lugar, no dia 21 de Janeiro de 1900, inicia-se a publicação da segunda série do jornal com o nome de O Figueirense, que assume doravante a nova característica de bi-semanário, mantendo uma linha conceptual independente. Esta série foi liderada pelo editor José Maria Roque dos Reis, oficial de encadernador, e pelo redactor Joaquim da Assunção Martinho, que vivia em Coimbra e cujo nome não constava da ficha técnica do Jornal.
Nesta época o Jornal era publicado na Tipografia Popular de Prazílio Augusto Martins (1870-1911), sede da administração e redacção, situada no Passeio Infante D. Henrique e cujas origens remontam ao ano de 1897. O Jornal adquirira agora um formato fólio de quatro páginas de cinco colunas.

Independência

O jornal "O Figueirense" no número um da sua segunda série, ao verificar que a Gazeta da Figueira tinha sido mal informada acerca da sua orientação política, enuncia no seu primeiro artigo, com o título de “A Nossa Atitude”:
«O Figueirense não é, como muitos poderão supôr, um jornal politico. Apresenta-se com caracter independente, sem sympathias por este ou por aquelle partido, e sem preferencias politicas por este ou por aquelle homem publico. Propõe-se a defender desinteressadamente os interesses da Figueira, a auxiliar o fraco contra o forte, quando a razão e a justiça estejam do seu lado, e sem atender a odios e inimizades politicas. A nossa divisa será a Justiça e a Verdade. Escudados pela Justiça, fustigaremos sem piedade os que o merecerem; se nos atacarem com as calumnias e com o insulto, responderemos com a verdade, que «muitas vezes doe mais que a mentira».
A Gazeta da Figueira veio porém a rectificar o seu lapso, na edição de 24 de Janeiro de 1900, pelo que o jornal, agradecendo as boas referências que foram dadas nessa edição, vai afirmando: «Como a Gazeta regista a nossa declaração de não querermos ser um jornal politico, é conveniente aclarar. Não seremos um jornal politico na accepção estreita, vulgar do termo, que na accepção geral não podemos deixar de o ser. Se algum dia quizessemos ser jornal “partidario”, declaralo-hiamos préviamente e com a maior lealdade. Não nos prestaremos a servir encapotadamente baixos interesses pessoaes ou de partidos».

Linha editorial

A verdadeira orientação editorial do jornal “O Figueirense” viria a ler-se nas entre linhas do artigo “Explicando”, escrito por Amadeu Sanches Barreto, que acompanhava o editorial do primeiro número da segunda série. Este artigo, datado de Alhadas (concelho da Figueira da Foz) em 14-1-1900, uma semana antes da segunda série começar a ser publicada, é complementar às ideias patentes na apresentação. Reveste-se de grande importância, porque fornece informações que muito interessam ao extinto jornal Povo da Figueira e prova, em primeiro lugar que o jornal “O Figueirense” surgira de novo nesta segunda série para o vir substituir.
Ainda que seguisse uma linha independente, o artigo “Explicando”, continua a delinear o meticulosamente o “retrato” do fundador, como é possível verificar no seu conteúdo: «Prazilio Augusto Martins é um daquelles caracteres que para se compreenderem é necessário tratá-los na intimidade. Trabalhador indefeso, intelligente, extremamente meticuloso em todos os pontos que possam tocar a sua dignidade, pode e deve fazer carreira com o “Figueirense”, se tiver quem o coadjuve efficazmente e o guie no escabroso mister de lançar um jornal à publicidade. Dotado de ideias amplamente liberaes, democraticas mesmo, não se achando filiado em nenhum partido político, é de esperar que imprima a este jornal uma orientação justa, imparcial, fundada nos principios dos direitos e regalias populares. Se não se póde dizer que o “Povo da Figueira” foi substituído por um jornal genuinamente republicano, é grande erro afirmar-se que as hostes monarchicas contarão mais um soldado na imprensa.
E para o demonstrar basta dizer que muitos dos colaboradores do jornal que elle vem substituir, continuarão a escrever para o “Figueirense”».
Recursos humanos

O novo “O Figueirense” defendeu, durante a sua existência, a causa democrática, ainda que não de forma tão directa como o jornal “Povo da Figueira” havia feito. “O Figueirense” foi, em todos os aspectos, um jornal que quis primar pela diferença, em busca de uma independência e meios de acção eficazes para a recepção e difusão da informação. Deste modo abriu as portas ao regime de correspondentes, que estavam espalhados em quase todas as freguesias do concelho da Figueira da Foz, em toda a região centro, centro-norte e centro-sul (distritos de Coimbra, Aveiro e Leiria), em localidades estratégicas do país, como Lisboa, Porto, Braga, Santarém, Almada e ainda na África Ocidental, onde residiam comunidades portuguesas.
Nesta época, foram colaboradores do jornal “O Figueirense” as seguintes personalidades: Amadeu de Sanches Barreto, João Barreto, Manuel Barreto, José da Silva Fonseca, Manuel Gaspar de Lemos, José Alves Miranda, Fortunato Correia Pinto, Joaquim de Assunção Martinho, Bernardo Teles Leitão, Henrique de Barros, Aníbal Taborda, R. Paganel, António Júlio Vale e Sousa, António Mira de Miranda e Brito, João Jacques, Arménio Monteiro, entre outros.
O editor José M. Roque dos Reis deixou de exercer a sua função a partir da edição número 180, de Domingo dia 20 de Outubro de 1901, como prova a declaração publicada nesse número do jornal. Foi assim substituído pelo proprietário, que tomaria o controlo absoluto do jornal até ao fim da segunda série. Em resultado de uma crítica insensata que o redactor do jornal dirigiu a um papel desempenhado pelo actor Ferreira da Silva, no Teatro Príncipe, na Figueira da Foz, Fernando Augusto Soares impôs-se à liderança de Prazílio Augusto Martins, o que vai levar à suspensão da segunda série.
Em 24 de Abril de 1902, Quinta-feira, termina a segunda série, com o número 225, ao fim do terceiro ano de edição.

Terceira série (1918)

A terceira série inicia-se em 15 de Fevereiro de 1918, com carácter bi-semanário, durante uma das suspensões do jornal Voz da Justiça, conforme consignado numa circular assinada por Manuel J. Cruz, de 15 de Janeiro de 1918, distribuída aos seus assinantes, que diz o seguinte: “Venho comunicar a V. Ex.ª que, tendo o meu jornal sido suspenso hoje, 15 do corrente, por ordem do delegado do atual governo neste concelho, fica a remessa para V. Ex.ª interrompida até que se normalize a actual situação”.
Tendo como director e editor Raimundo Esteves, o Jornal “O Figueirense” era propriedade da Empresa. A redacção, a administração e a impressão funcionavam na Tipografia Popular, de Manoel J. Cruz., publicando-se às Terças-feiras e às Sextas-feiras. O novo formato era do tipo fólio de quatro páginas, a seis colunas cada.
O artigo de apresentação refere o seguinte: «Saibam, pois, as gentes, que O Figueirense, é autenticamente, genuinamente um jornal novo, com todas as suas características. Aqui não se depende de ninguém, não se continua a vida de ninguém, não se obedece a quem quer que seja! Isto não está aforado. E quem aqui vive dentro, tem a mesma liberdade de acção que um pardal na larguesa vasta das asas...
Uma única coisa temos assente e firme: – não fazer política partidária! O resto será como Deus quiser e for servido!... Defender os interesses da nossa terra, lutar pelo bom nome, pelo engrandecimento da Figueira, é tão natural e tão intuitivo, tão claro, que até a gente escusa de dizê-lo, visto que o próprio nome do jornal é o mais bairrista possível.
Afirmar nesta hora grave para a nossa nacionalidade o nosso patriotismo, a admiração pelos que se batem na França e na Africa por Portugal, a fé ardente na vitória dos aliados, que é a nossa vitória, é escusado repeti-lo, tão naturalmente, tão firmemente tudo isto deve estar ligado à alma de todos os portugueses!
Acentuar o espírito de liberdade que sempre fulgirá em todas as nossas palavras é, então, perfeitamente desnecessário: – neste jornal, – de quem o escreve ao ambiente que se move, – toda a gente abomina o luar, porque só gosta do sol! ... E temos dito!»
Os colaboradores da terceira série foram, entre outros, Manuel Cruz, Ernesto Tomé, que escrevia as “Crónicas Perversas”, Manuel Gaspar de Lemos e o autor daquelas linhas, autor de um único artigo, que assinava pelo pseudónimo de Eça de Queiroz.
O jornal O Figueirense viria a terminar a publicação da terceira série em 29 de Março de 1918, com o número 13, após o término da suspensão ao jornal A Voz da Justiça, informação esta que foi dada por uma folha volante onde se podia ler: O Figueirense interrompe a sua publicação. Saindo das oficinas de “A Voz da Justiça”, e devendo reaparecer amanhã, terça-feira, 2 (de Abril), este jornal, impossível é continuar agora a publicidade do nosso bi-semanário.
1 de Abril de 1918.
Pela redacção do «Figueirense» – Raimundo Esteves.

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