quarta-feira, 30 de abril de 2008

Mulher sem medo

No dia em que passam quatro anos sobre a morte de Etelvina Lopes de Almeida, recordamo-la, numa auto-biografia, concluída há cerca de dez anos, durante uma investigação sobre a rádio nos anos 50. Numa entrevista inédita, esta voz da EN passa em revista alguns dos principais acontecimentos da década: os folhetins, inaugurações, os movimentos independentistas, Humberto Delgado e a oposição.

Recolha Virgílio Luís Silva fotografia Dina Cristo

Nasci em 1916, em Serpa, no Baixo Alentejo, e fiquei por lá até aos meus cinco ou seis anos. Os meus pais eram professores primários e, por volta de 1920, foram exercer a profissão em Idanha-a-Nova, onde residiam os meus parentes paternos.
Fiz a instrução primária em Idanha. Fomos, depois, residir para Barcarena, na sequência de um caso desagradável ocorrido com a minha mãe quando estava nos últimos meses de gravidez da minha irmã Maria Isabel: a minha mãe sentiu–se muito mal e faltou às aulas durante uma manhã. Nesse tempo as turmas eram muito grandes, na província um professor tinha três ou quatro classes juntas e, para poder ministrar o programa a cada classe, ficava na escola até muito tarde. Quando a minha mãe chegou à escola, depois do almoço, estava o inspector escolar à espera dela para a informar de que ia ser processada por ter faltado nessa manhã. A minha mãe, com uma gravidez mais do que evidente, lá se explicou. Mas não, não havia justificação plausível para o atraso.
O processo disciplinar penalizou-a em dois anos sem trabalho e sem remuneração. Ficámos numa situação difícil, com metade do orçamento para uma família acrescida. Descontentes, os meus pais resolveram sair do Distrito. Antes de nos fixarmos em Lisboa, ainda residimos no Monte da Caparica e Almada. As sucessivas aproximações da família à capital estavam relacionadas com a continuação dos meus estudos e dos de minha irmã.
Já em Lisboa, frequentei o Liceu Maria Amália que era, então, no Carmo. Tenho gratas recordações de algumas professoras. Quero prestar homenagem à minha professora de História, a Sra. Dra. Olímpia Bastos, que sabia prender a atenção dos alunos e transformava a aprendizagem num prazer. Era ela quem ensaiava as nossas festas e mantinha com as alunas um relacionamento de verdadeira amizade.
No Liceu fiz a secção de Letras. Pensei seguir o Curso de Filosofia, mas era necessário tirar a Secção de Ciências. Resolveu-se, em casa, que seria melhor ficar internada num colégio com boa reputação, que havia em Queluz. A mensalidade era de 400$00.
Eu tinha saído de um esgotamento cujo tratamento consistia em repouso absoluto, sem estudar, nem ler os jornais. Naquele tempo não havia muitas possibilidades de distracção sem sair de casa. Ouvia rádio. Entusiasmei-me, então, com as emissões de O Papagaio, dirigidas por José Castelo na Rádio Renascença e comecei a colaborar no programa enviando objectos que respondiam a jogos de adivinhas. Lembro-me, por exemplo, de que enviei um colar de bogalhos para completar a frase que devia ser ‘vila de Colares’.
Tinha uma participação activa no programa e a minha contribuição de artesanato foi tal que fui convidada para a exposição que encerrava o concurso. Conheci, então, a equipa de O Papagaio.
Por essa altura saiu a secretária do José Castelo e, lembrados do meu empenhamento, convidaram-me para a substituir. O vencimento era de 400$00 mensais. Aceitei, eu tinha 25 anos e achei que devia ajudar os meus pais a criar a minha irmã mais nova, a Maria Alexandra. Desisti do Curso de Filosofia.
Quando o José Castelo foi para a BBC, fiquei a substituí-lo tanto na locução como nos noticiários e sessões de lançamento de artistas. Lembro-me que nessas sessões se estrearam a Maria de Lourdes Norberto e a Carmen Dolores.
Fui acumulando trabalho e já estava a rever as provas da Revista da Renascença, ganhando os mesmos quatrocentos escudos. Não era justo nem suficiente. Eu estava a fazer economias até nas refeições. No andar por cima da Rádio Renascença havia a pensão dos pais do Igrejas Caeiro. Eu mandava vir o almoço da pensão, que constava de uma sopa, um prato de peixe, um prato de carne e vinho (que eu substituía por fruta) e pagava cinco escudos. Almoçava metade e guardava o resto para o jantar.
Sugeri ao Lopes da Cruz, então responsável pela Rádio Renascença, um aumento de vencimento correspondente ao aumento de trabalho. Recusou e decidi sair. Entretanto, o Adolfo Simões Muller que fazia parte da equipa de O Papagaio foi para o Diário de Notícias e, sabendo do meu descontentamento, convidou-me a ir também. Resolvi esperar mais um tempo para não deixar o programa sem substituto.
Surgiu outra oportunidade de trabalho que me pareceu interessante e deixei a Rádio Renascença. Entrei para uma empresa de recortes de imprensa, recém-criada. Recebia oitocentos escudos por mês, estava a melhorar.
Já tinha, então, a colaboração no Modas & Bordados. A Maria Lamas, então directora da Revista, convidou-me para a secretariar. E fui.
Em 1943 era chefe de redacção de Modas & Bordados e assinava contos e reportagens no Século Ilustrado, da mesma empresa.
Em 1944 concorri a locutora da Emissora Nacional. Na altura, a admissão na carreira exigia três provas de aptidão: prova de voz, que era eliminatória, em que passei sem dificuldade porque já vinha com a experiência da Rádio Renascença; uma segunda prova de conhecimentos de música erudita e ligeira; uma terceira prova que consistia na leitura de textos em língua francesa e inglesa. Passadas estas provas com êxito, fiz um estágio de oito dias ao microfone.
Em 1946, era locutora da Emissora Nacional e directora de Modas & Bordados. Por esses anos realizei, também, algumas tardes infantis no S. Luís e no Coliseu dos Recreios a favor da Colónia Balnear Infantil de O Século.
Nunca me desliguei de Serpa onde passava férias. Observava de perto o abandono sociopolítico do Alentejo. O desencanto dos trabalhadores espelhava-se nos cantares que, de uma forma poética chamavam a atenção para as disfunções sociais:
Bem podia, quem tem muito; Repartir com quem não tem; O rico ficava rico; E o pobre ficava bem.
No intervalo dos trabalhos sazonais, as mulheres (tal como os homens) do campo ficavam sem emprego e sem qualquer remuneração. Organizei uma ‘oficina’ de tecelagem onde mulheres da zona de Serpa pudessem aprender uma actividade que lhes valesse algum dinheiro para ajudar o orçamento familiar. Em 1945, a Casa do Alentejo, em Lisboa, expôs esses trabalhos de tecelagem. O certame abriu com uma conferência cujo tema foi A Mulher no Trabalho. Era, também, uma forma de chamar a atenção dos citadinos para os problemas económicos dos trabalhadores rurais.

Em 1948, surgiu a oportunidade de tomar posição a favor da democracia. Assinei, juntamente com outros colegas da Emissora Nacional, as listas da oposição que advogavam a liberdade de imprensa e a libertação dos presos políticos do Tarrafal, entre outras coisas.
A demissão dos cargos de quantos assinaram o documento era óbvia, mas não foi imediata. O António Ferro, então responsável pela Emissora Nacional, não tomou qualquer medida, pelo menos directamente. Só as atitudes das chefias mudaram. Eu pertencia à Secção Social da Casa do Pessoal e, nessa condição, era contactada pelos trabalhadores de menos recursos para lhes valer na compra de medicamentos e obter exames médicos de que necessitavam. Para isso, consegui um acordo com o Sr. Desidério, da farmácia do bairro: ele fornecia os medicamentos receitados pelo médico aos funcionários mais carenciados e eu, como funcionária da Casa do Pessoal, responsabilizava-me pelo pagamento no final do mês. Certo dia soube, pelo empregado da farmácia, que o meu nome «estava invalidado» pelo meu chefe.
A partir daí só conseguia consultas nos hospitais ou radiografias para os trabalhadores através de conhecimentos de gente da oposição que os faziam gratuitamente (não tinha garantia de que autorizassem o pagamento). Dificultava-lhes, assim, a tarefa de me excluírem dos serviços de Acção Social.
Quando o António Ferro saiu da Emissora Nacional para ocupar outro lugar, deixou na gaveta os processos dos oito trabalhadores que tinham assinado as listas da oposição. O Felner da Costa, que o substituiu (vinha da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho!!!), apressou-se a pôr-nos na rua.

Em 1949, fiz-me sócia da Liga Portuguesa Feminina para a Paz, com sede num 1.º andar do Largo do Príncipe Real. Fazíamos reuniões em que se falava dos problemas da mulher, mas acabou. As sócias passaram para o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e aí é que havia actividade. Na direcção esteve a Sara Beirão e depois a Maria Lamas que estava muito feliz por ter um espaço onde podia dizer o que queria.
Então o Conselho fez uma exposição de obras literárias de mulheres de todo o mundo, cedidas pelas embaixadas, com os respectivos retratos pintados por uma das sócias. Tudo feito no maior segredo. Em cada dia que durou a exposição houve uma conferência. Correu normalmente até que chegou a vez de Maria Lamas falar. Foi brilhantemente agressiva, foi presa. A Associação, obviamente, fechada.
Mais tarde a Fernanda Pires da Silva resolveu ressuscitar o Conselho: reuniu, na Sociedade de Geografia, a Maria Lamas, a Cesina Bermudes, convidou a Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Brasileiras, falou-se muito, fizeram-se muitos projectos e... ficou por aí.
Em 1962, assinei um documento da oposição contra a guerra de África e, por isso, fui demitida da revista Modas & Bordados. Estava sem Rádio e sem Revista. Para sobreviver recorri ao trabalho clandestino total. Nunca assinei com pseudónimos, não assinava.
Estive assim até 1968, quando fui para Paris, para casa de minha irmã Maria Alexandra, donde mandei uma série de reportagens sobre os emigrantes portugueses, para publicar no jornal O Século (sem a minha assinatura, claro!). Era a época do boom da construção civil e dos bidonville, esses buracos de chão térreo, muito frios, aquecidos com braseiras e onde morreram alguns emigrantes intoxicados. Fui muito bem recebida, era alguém que se interessava por eles.
Colaborava, então, na revista Donas de Casa e aí contactei com o projecto Cidade Turística - Madeira Matur, ligada à imobiliária Construtora Grã-Pará. A empresária, Fernanda Pires da Silva, convidou-me para coordenar o Gabinete de Relações Públicas da empresa e promover, directamente, os hotéis da Ilha da Madeira e do Algarve em exposições que realizámos na Espanha, Suíça, Bélgica, Brasil e Canadá. Tínhamos públicos específicos: operadores turísticos, embaixadas e emigrantes. Lembro-me de que levámos milhares de estrelícias para distribuir. Foi um êxito. Era uma forma muito diferente de promover serviços, era directa e com calor humano.
No Canadá, senti-me em casa. Desci a Rua Augusta, todas as lojas tinham produtos tipicamente nossos. Acabei por assistir a 17 baptizados (ao mesmo tempo), na Igreja de S. Luís.
Quando fui ao Brasil, os emigrantes convidaram-me para uma festa e avisaram-me de que havia uma surpresa. Era uma surpresa confrangedora: um par de tamancos acompanhados da frase «foi só isto que trouxemos». Era uma forma de agressão. No meio da surpresa, apertei os tamancos ao peito e disse «foi a melhor prenda que me podiam dar, foi de tamancos que os portugueses fizeram o Brasil» e desfez-se o gelo.
Com a revolução do 25 de Abril fui reconduzida ao meu lugar de locutora na Radiodifusão Portuguesa (nome resultante da fusão da Emissora Nacional com outras estações de rádio não estatais). Em 1975, fiz um curso de Chefe de Equipa de Realização Radiofónica e, no ano seguinte, fui chefiar o Departamento da Radiodifusão Portuguesa Internacional, onde podia continuar a contactar com as comunidades portuguesas no estrangeiro. Nesse mesmo ano, no dia de Camões, organizei a primeira Mesa Redonda Internacional. Depois fui várias vezes ao estrangeiro visitar as comunidades emigrantes. Fui a Lyon, convidada pela Associação de Emigrantes Portuguesas para festejar o 1.º de Maio e aos Estados Unidos inaugurar uma estação de rádio dirigida por emigrantes portugueses. A revolução dava-me espaço para continuar a luta pelos meus ideais e achei que o faria melhor integrada no Partido Socialista, onde sempre me situara ideologicamente.
Em 1976, fui eleita deputada do PS à Assembleia Constituinte, pelo Circulo Eleitoral de Évora. Foi o ano em que se discutiam, na Assembleia, os artigos da Constituição da República. Nem toda a gente queria uma Constituição democrática. As galerias estavam cheias de pessoas a assistir que se manifestavam contra tudo o que se dizia no hemiciclo. A certa altura resolveram boicotar a Assembleia e fecharam-nos as portas. Os deputados ficaram prisioneiros dos manifestantes durante dois dias e duas noites. Os manifestantes ocuparam o refeitório e obrigaram–nos a uma greve involuntária de fome.
Havia uma senhora grávida que se sentia mal. Telefonei para a Radiodifusão Portuguesa a pedir que nos enviassem comida e os colegas da rádio solidarizaram-se e mandaram sandes mas o piquete, que estava a controlar a porta do palácio de S. Bento, não deixou que entrasse a comida.

Como não conseguíamos dissuadir os manifestantes, o Professor Henrique de Barros telefonou ao Vasco Lourenço a pedir ajuda e apareceu um helicóptero que deixou cair as sandes no jardim do palácio. Ainda tentaram impedir que apanhássemos a comida saltando para o jardim, mas não conseguiram.

Os deputados de então tinham que responder a desafios muito diferentes. Um deles era gerir a novidade das cooperativas agrícolas. Solicitavam-me para os mais diversos assuntos. Era necessário arranjar técnicos agrícolas, maquinaria, tudo o que faltava. Bati-me pelo meu eleitorado e fui reeleita em 1978.
O meu interesse pelos problemas das mulheres continuaram e, em 1983, fui distinguida pelo Conselho Nacional das Mulheres Brasileiras como A Mulher do Ano no Relacionamento Portugal-Brasil. Estava integrada na Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias e Profissionais e colaborei, activamente, no 1.º Congresso Internacional, em 1987. Em 1994, fui homenageada pela Associação das Mulheres Socialistas.
Outra das minhas preocupações era a qualidade de vida dos idosos. Fui à Suécia para contactar com formas de organização de casas para a 3.ª idade e, em 1983, o Parlamento Europeu para o Idoso convidou-me a presidir a uma sessão em Estrasburgo, aquando foi aprovada a Carta Europeia para os Idosos. Estes contactos deram-me curriculum e experiência para o que faço agora.
No dia 10 de Junho de 1995, o então Presidente da República, Dr. Mário Soares, agraciou-me com a Ordem da Comenda de Mérito. Continuo a trabalhar e a escrever. Estou a finalizar a introdução para um livro que a Fernanda Pires da Silva vai publicar sobre o primeiro restaurante junto ao Cristo Rei (que respeita o ambiente) e a rever o livro de que já falei, Ao Levantar das Tendas. Não lamento nada do que me aconteceu. Quero que se saiba que não trocava a minha vida por nada.




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