quarta-feira, 21 de maio de 2008

Silenci(ament)o


No Dia Mundial da Comunicação, falamos de silêncio, a condição para a sua existência. Partimos de algumas ideias presentes em “Silêncio e Comunicação”, um livro de Tito Cardoso e Cunha editado, em 2005, pela Livros Horizonte.

Texto Dina Cristo

O silêncio é não só uma condição ao processo (e sua eficácia), como uma forma de comunicação, com sentido denso, relevante e interpretável. Sem este elemento paralinguístico não existiria o espaço de escuta, necessário à reciprocidade de uma verdadeira conversação, memória e interrogação acerca do que fora dito. É a mais sublime forma de organização sonora.

Há dois tipos de silêncio muito distintos: o silenciamento, o “tacere” (informativo), o calar-se, a privação súbita da fala, que se retém; o querer expressar-se mas não se poder ou dever por medo, obediência, submissão, censura, repressão, recalcamento, rigidez. Trata-se de uma opacidade, desde a ignorância (ditatorial) à superficialidade (democrática), que oculta a verdade dolorosa que, por isso, se pretende evitar, esconder, resistir, recusar, desprezar ou dissimular, numa atitude de hostilidade ou reforço do poder autoritário, como um instrumento de hierarquia, que nega o direito do outrem a saber, ou de ignorância do “outro”, a verdade pessoal ou social assim “esquecida”.

Bem diferente é o silêncio, o “scilere” (comunicativo), o estar silencioso, sem falar (porque nada há de relevante para dizer), o estar calado, ma(i)s disposto a ouvir, que indica sabedoria, profundidade, tranquilidade, paz, verdade. Trata-se de um silêncio ecológico: pode expressar-se, mas opta-se livremente pela contenção da palavra a fim de a poupar e proteger de um uso excessivo. É assim que na sociedade tradicional, onde o silêncio é de ouro, é tido como um bem escasso que urge reter e economizar, sobretudo ao nível dos nomes. Temos o caso dos Espartanos (na Grécia prestava-se culto a Muda, a deusa do silêncio), Apaches e Nórdicos.

O silêncio no sentido geral é uma espécie de ponto morto, um tempo de espera (para o qual é preciso ter prudência e paciência), uma pausa, suspensão, prelúdio, um espaço (de questionamento e escuta que permite a conversação e o aprofundamento da interacção) de autenticidade, verdade, não só inaudível mas também invisível, associado à leitura e ao olhar. É também o que escapa ao discurso, o que fica por dizer, devido às limitações das palavras, da linguagem verbal - o inefável, o que haveria para dizer mas não se consegue exprimir. O silêncio, ao contrário da fala, do som, da linguagem, da palavra, do logos, que indicam separação e diferenciação, permite-nos a fusão e indiferenciação, a união, o caos inicial que é a suprema harmonia; é eminentemente humano, implica consentimento, aceitação, respeito, solidão e neutralidade. É considerado uma actividade com diferentes gradações e funções (como a activa, afectiva, cognitiva e comunicativa).

Espiral de ruído

Nas sociedades contemporâneas, depois dos silenciamentos devidos às imposições, perseguições e manipulações políticas, religiosas e comerciais, há hoje uma tendência para à dor da censura contrapor o prazer da verborreia, incontinência verbal vivida com(o) um certo erotismo oral. Prolifera, assim, a tagarelice, insignificante, redundante, imoderada, inautêntica, monólogo imposto que diminui a possibilidade da troca, numa verbosidade facilitada pela individuação. «A tagarelice não é dita para ser ouvida, o que ela revela é o facto de poder dizer-se. Daí que tenda a ser acolhida, não pelo silêncio, mas por uma igual intensidade tagarela numa espiral de ruído por fim mutuamente ensurdecedora».

O discurso é inerente à natureza da relação social, que é ela própria uma violação do silêncio. Ora a sua obliteração é ainda mais favorecida pela vida democrática, que exige publicidade, transparência, sendo no contexto político, considerado o silêncio um luxo, ilegítimo e autoritário. «Para um político, o que hoje em dia se torna verdadeiramente difícil é permanecer em silêncio sobre o que quer que seja (…) o que se quer silenciar tem de se ocultar sob o manto discursivo desviante da atenção (…) Para que um silêncio seja, mesmo assim sustentável, haverá que invocar algum dos princípios inatingíveis e suficientemente intimidatórios como por exemplo o “segredo de justiça” ou então o “interesse nacional”».

Também o individualismo concorre para eliminar o silêncio. «Numa sociedade em que a tendência é a de todos falarem, e falarem obsessivamente de si, só o profissional tecnicamente treinado para a escuta consegue manter o silêncio (…)».

Há como que um esforço colectivo para anular o silêncio (considerando-o anti-natural), facilitado pela tecnologia e fomentado pela indústria dos “media”, consumida como ruído de fundo e mera companhia virtual. «Porque se tem intensificado tanto, nas nossas sociedades, essa angústia do silêncio, provavelmente ela foi gerada pela própria expansão e evolução dos media cuja natureza ou lógica ou economia é incompatível com o silêncio (…). A abolição do silêncio, o seu impedimento compulsivo, resulta da estridência que é a razão de ser dos media num contexto de concorrência e tem por consequência o imediatismo irreflectido e reduzido à sua pura dimensão instintual».

Comunicação empobrecida

Na agenda, mediática, política e pública, reina o ruído em que se perdem dados, acelera informação irrelevante, num fluxo redundante, que perturba, diminui, impede e enfraquece a comunicação. «Tal como o urânio empobrecido das armas as torna mais eficazes na sua acção mortífera, assim também uma comunicação empobrecida a torna mais eficaz como arma de dominação ou manipulação».

A alternativa passa pois por ultrapassar primeiro este ruído (o externo, de que a Lei do Ruído é um incentivo, e o interno, nomeadamente o mental), depois o silenciamento (da dor, deixando-a exprimir-se até se dissipar) até atingir primeiro o silêncio e a paz que vem da dissolução natural do sofrimento, originada pela aceitação em vez da sua ocultação, até ao Silêncio Divino, as Trevas e o Caos, que são o verdadeiro Discurso total, Luz, Ordem e Som porque o «(…) homem cala-se, mas o silêncio é de Deus».

Ao silêncio dedicou a revista Cais o seu número 100, em Julho/Agosto de 2005, onde é elogiado: «Há que redescobrir pois a subtil comunhão e eloquência do silêncio. Como terapia também dos tempos que correm, onde a invenção da solidão e da distância nunca originou tantos frustrados meios de a tentar vencer, aumentando-a afinal. Onde nunca se investiu tanto na comunicação por incapacidade de comungar (…) esse espaço interior do silêncio onde a verdadeira comunicação, que dispensa pensamentos e palavras, se processa naturalmente. Sem o estorvo do ruído mental, materializado na logorreia mediática. Porque, como disse Agostinho da Silva: “[…] o que se tem de importante a participar, ou a comunicar, sempre as duas palavras no seu significado etimológico de fazer do outro uma parte de nós ou um comungante do que somos, isso se faz chegar e a nós volta, mais rico, muito mais pelo silêncio do que pela palavra, escrita ou falada”».

[1]. Crêem nesta atitude, que reforça no entanto o vínculo social, os atenienses (daí o êxito da oratória), meridionais e europeus.[2].[3]. Actualmente, é mais o discurso que visa a todo o custo evitar o temido silêncio do que o inverso. Um investimento, individual e colectivo, na negação ou recusa do silenciamento. E quanto mais discurso existir mais conflito haverá, numa espiral de ruído, desentendimento, frustração e incompreensão.[4]. Sobretudo os “media” audiovisuais vêm o silêncio como uma falha técnica, por isso eliminam as pausas, aceleram o ritmo, aumentando o ruído até ser ensurdecedor e anestesiar as sensações, emoções, cognições e aspirações, não sem o conteúdo ser reduzido a um discurso inessencial.[5]. Profundamente anti-comunicativo, o ruído, que é hoje permanente devido aos “backups”, confunde a mente e atordoa os sentidos, numa tentativa desesperada de evitar a dor da verdade que, assim, se pretende ilusoriamente mascarar. É, pois, uma resistência, um “charivari” social, numa encenação do caos, enquanto desorganização sonora.[6].[7][1] CUNHA, Tito Cardoso – Silêncio e Comunicação. Livros Horizonte. 2005, pág. 35. [2] Idem, pág. 61. [3] Idem, pág. 32. [4] Idem, pág. 47/48. [5] Idem, pág. 44. [6] Idem, pág. 42. [7] BORGES, Paulo – O silêncio do despertar in CAIS, Julho/Agosto, 2005, pág. 90/91.


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1 Commentarios:

Anonymous Anónimo disse...

Fez-me lembrar a letra de uma canção: "As palavras calam o que o silêncio diz".

terça-feira, 10 junho, 2008  

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